Título: Alfonsín, Menem e as relações cívico-militares. A construção do controle sobre as Forças Armadas na Argentina democrática (1983-1995) - Capítulo segundo - Os militares e a política na Argentina prévia à democratização
CAPÍTULO SEGUNDO
OS MILITARES E A POLÍTICA NA ARGENTINA PRÉVIA À DEMOCRATIZAÇÃO
2.1) A institucionalização do poder militar como ator político (1955-1976).
Desde a queda do segundo governo do presidente constitucional Juan Domingo Perón84 em 1955 até a reinstalação democrática de 1983, o poder militar se constituiu em uns dos protagonistas centrais do sistema político argentino. Ao longo desse período, as Forças Armadas se foram convertendo, mas que em um grupo de pressão,85 em um verdadeiro sujeito de poder que teve um alto grau de autonomia política e de corporativização institucional dentro do cenário político. Esta tendência só foi reformulada ao finalizar a última experiência autoritária vivida na Argentina, e a partir das mudanças registradas tanto no sistema político quanto no interior dos quartéis durante os anos 70. A situação político-institucional que se abriu com o colapso do regime militar inaugurado em 1976 esteve cruzada tanto pelas velhas tendências quanto por padrões inovadores, porém, em seu conjunto, supôs a estruturação de condições positivas para a articulação de um tipo de relações cívico-militares essencialmente diferentes daquelas assentadas sobre modalidades de domínio militar que caracterizou o processo político argentino durante as décadas posteriores.
No momento em que se produz a reinstauração democrática a fins de 1983, a Argentina deixava atrás um passado caracterizado pelo desenvolvimento pleno de formas repetidas de intervencionismo militar na política, em um cenário assinalado por uma instabilidade institucional reiterada. Desde fins do século passado e no compasso do incremento permanente e contínuo da militarização do Estado e da sociedade política, a ingerência política do poder militar se foi configurando como uma constante do sistema institucional local. O incremento da participação direta do poder militar no Estado, assim como seu avanço corporativo sobre a sociedade política, pareceu se manifestar de muitas maneiras e foi adotando diferentes modalidades. Essa ação não se limitou somente à emergência de governos autoritários encabeçados e dirigidos pelas Forças Armadas, pois também foi permanente o exercício de pressões e ponderações, ou a articulação de laços de influência sobre as autoridades civis, sem que mediasse uma ruptura institucional da ordem democrática. Houve inumeráveis revoluções e golpes institucionais palacianos, alguns fracassados e outros bem sucedidos, que deram lugar ao surgimento de governos civis (e de aparências legais) consolidados politicamente pelo poder militar ou em torno aos quais este poder serviu de garantia última do sistema em questão.
Além disso, ao longo de todos estes anos, a intervenção direta dos militares em política também abarcou variadas modalidades de manifestação, tais como o exercício de formas de arbitragem nos conflitos políticos partidários; o posicionamento como fator de poder de forças políticas locais ou como grupo de pressão contra setores governamentais contrários, a inauguração de regimes perfilados a eliminar as demandas sociais e políticas consideradas "excessivas" pelos fardados, a desativar politicamente os setores populares, a desarticular suas organizações ou a disciplinar coercivamente a oposição; e, por último, a posta em prática de políticas orientadas a provocar uma profunda transformação da estrutura sócio-econômica e político-cultural.
Pois bem, a partir da queda do governo do General Juan Domingo Perón, o sistema político argentino, nas mãos das forças 'antiperonistas', girou em torno a três grandes orientações, que se constituíram em condições de funcionamento desse cenário, isto é, (i) a exclusão política do peronismo, (ii) a atribuição, por parte das Forças Armadas, do papel de guardiões tutelares e garantes dessa exclusão e (iii) a aceitação ativa da classe política não-peronista das duas condições prévias.86 Estas condições não só implicaram uma profunda redefinição funcional, orgânica e doutrinária das Forças Armadas87 mas também supuseram fundamentais mudanças no jogo político de então a partir da atribuição, por parte da dirigência política não-peronista, da condição de exclusão do peronismo e de sua aceitação como padrão permanente ao redor do qual se articularam as diferentes alianças e as projeções cívico-militares que se desenvolveram desde então. Em diversos graus e com diferente intensidade segundo as circunstâncias políticas e sociais, estes lineamentos foram assumidos por todos os partidos políticos e setores sociais enfrentados com o peronismo e se mantiveram até o colapso do último regime militar em 1982. Desta maneira, a dirigência política, longe de reafirmar a subordinação castrense às autoridades civis, propiciou, reafirmou e legitimou a projeção autonômica dos militares sobre o cenário político, fazendo disto um eixo fundamental para viabilizar ou, pelo menos, garantir, o objetivo central da marginalização institucional do peronismo e tentando, desse modo e sobre esse fundamento, consolidar uma "democracia estável". Perante tal situação, não poderia afirmar-se que o militarismo e a impossibilidade de estabilização de um sistema democrático "genuíno e pleno" fossem uma responsabilidade exclusiva do comportamento militar.
Até o golpe de 1966 que inaugurou a chamada Revolução Argentina (1966-1973), as Forças Armadas tinham-se limitado a intervir em procura de encontrar uma saída política auspiciosa a curto prazo, conformando governos militares de caráter provisório e orientativo, em cujo âmbito o poder castrense tentou direcionar, orientar e condicionar o processo político local. Desse modo, as Forças Armadas tinham-se constituído em agentes de arbitragem das disputas políticas, assim como se observou nos períodos 1930-32 e 1943-46.
A aparição do peronismo como movimento que protagonizou um profundo processo de transformação das pautas tradicionais de geração e distribuição de riquezas, mudou o espaço político-social argentino e permitiu uma radical polarização em torno à adesão ou oposição ao mesmo. A maioria dos setores proprietários (particularmente, os setores latifundiários) viram na ativação política da classe operária e dos setores populares promovida pelo peronismo no quadro de um amplo processo de industrialização por substituição de importações, uma ameaça virtual para seus interesses econômicos, sociais e políticos.88 Isso, somado à incapacidade do peronismo para incorporar dentro de seu modelo político às camadas médias e para articular um baseamento pluralista que reunisse um conjunto de forças políticas e sociais não peronistas que desse sustento à transformação social que tinha aberto desde mediados da década anterior,89 foi sentando os fundamentos para a mencionada polarização, ao mesmo tempo que forneceu as condições do processo de descomposição e queda do governo justicialista.
Esta situação penetrou todas as instâncias do sistema político, repercutindo com particular intensidade no interior das próprias instituições militares, o que acabou eclipsando todo o cenário nacional a partir do golpe de Estado que pôs fim ao governo do General Perón. Ao redor dessa confrontação articularam-se as mencionadas condições e as coordenadas que regeram os destinos do país até a instalação democrática de 1983.
Desde aquele momento, a sociedade local, sua atividade política e as alianças político-sociais que se desenvolveram em seu seio, atravessaram por duas etapas claramente definidas, nas que as mencionadas condições foram adotando diferentes conteúdos e modalidades de manifestação. A primeira etapa, que se estendeu desde 1955 até 1966, tratou-se de um período assinalado por uma dualidade mutuamente excludente no cenário político. Dualidade derivada da conformação de dois blocos antagônicos e excludentes, a saber, o peronismo como instância de representação política dos setores populares, especialmente da classe operária, e a frente antiperonista composta pelos setores médios e a burguesia em geral, representada politicamente pelo conjunto dos partidos políticos não-peronistas e pelas Forças Armadas. De um lado, tanto os governos militares quanto os civis ou semidemocráticos90 surgidos na época combinaram mecanismos democrático - parlamentários e modalidades extra-institucionais e repressivas para fazer frente à condição de exclusão do peronismo. De outro lado, a classe operária e os setores populares, privados da toda representação no sistema político, mas altamente ativados e mobilizados, desenrolaram ações extra-institucionais com o objetivo de desestabilizar, desde fora do Estado e da legalidade oficial, os governos civis e militares que pretendiam se consolidar e se convalidar ao redor da sua exclusão.
Em meio deste enfrentamento, os atores que tinham surgido afirmando a necessidade de exclusão política do peronismo se viram rapidamente cruzados por antagonismos que os debilitaram sensivelmente. As políticas de repressão seguidas por eles foram concebidas sem levar em conta os supostos sociais e culturais que faziam os setores populares aderirem ao peronismo e essa adesão se sustentar em um elevado nível de desenvolvimento organizacional e em um alto grau de mobilização e explosão político-social. Em conseqüência, essas políticas não só resultaram um fracasso na hora de estabilizar o sistema político sobre o fundamento da exclusão do peronismo, mas também foram ampliando a capacidade da classe operária para desestabilizar as iniciativas e projeções dessas forças. Por sua parte, o peronismo empreendeu ações contra a frente opositora que, embora fossem permanentes e até violentas, em nenhum momento, superaram a capacidade de pressão necessária como para desarticular as condições de exclusão impostas pelo eixo anti-peronista, se bem que sim impediram a estabilização das orientações que pretendiam cooptá-lo ou exclui-lo definitivamente do cenário político combinando formas de democracia formal com repressão política. Tratou-se, pois, de um "jogo impossível"91 no que, dadas as tendências e as circunstâncias criadas desde 1955, a vitória de um dos pólos enfrentados parecia remoto.
Neste quadro, os militares foram-se convertendo nos protagonistas principais do cenário político local encarregados de garantir, direta ou indiretamente, as condições impostas em setembro de 1955. Com isso, se foi dando lugar à emergência de uma nova forma de intervenção militar na política, quebrando a tendência característica do período 1930-1955 de não participação da direção do Estado -exceto no interregno 1943-1945-. A nova modalidade consistiu em um tipo de intervenção tutelar montada em torno à proscrição política do peronismo e desenvolvida mediante a combinação de um alto nível de militarização excludente no quadro de governos diretamente militares ou da ameaça de derrocada das autoridades civis dos regimes semidemocráticos, quando não eram funcionais à mencionada exclusão, continuando, assim, uma função de tipo corretiva mais ativa que a desenvolvida na etapa precedente.
Estes novos parâmetros de intervenção militar se observaram claramente a partir da vitória de Arturo Frondizi nas eleições presidenciais levadas a cabo em fevereiro de 1958, triunfo obtido com o apoio de Perón e seus partidários.92 A situação gerada -isto é, o acordo entre Frondizi e Perón- significou uma flagrante violação das condições proscritoras impostas no sistema político local desde a queda do governo de Perón e isso permitiu um importante giro nas relações cívico-militares. No âmbito militar se delinearam duas posições perante o fato. Uma linha propôs a necessidade de anular as eleições e não entregar o poder ao dirigente triunfante, afirmando inclusive a viabilidade de montar um governo militar "mais durável". Nesta perspectiva, a Marinha, com o Almirante Isaac Rojas à cabeça, se inclinava por instaurar uma "ditadura democrática" até que se criassem as condições necessárias para a realização das eleições que pudessem ser efetivamente ganhas pelas "forças democráticas". Esta facção, chamada de "golpista" ou "gorila", assumia uma posição marcadamente "anti-integracionista" manifesta com clareza na oposição que mantiveram à tendência frondizista por reintegrar ao peronismo ao processo político.93 A outra linha, protagonizada pelo General Aramburu, assumiu uma posição "legalista" que orientava-se à conservação da ordem constitucional. Tratava-se de que as Forças Armadas entregassem o governo ao presidente eleito mas conservando o "poder", isto é, preservando a capacidade de intervenção militar direta em caso de que a condição de exclusão do peronismo fosse cerceada contra os ideais "libertadores". Finalmente, se impuseram estes últimos, dando lugar a uma situação política particular. Frondizi assumiria o governo, mas as Forças Armadas conservariam o poder com vistas a garantir a continuidade da exclusão do peronismo.
Aliás, tudo isto mostrava que as diferenças na coalizão dominante apareciam na hora de avaliar a posta em prática desse grande objetivo dividido por todos os componentes cívico-militares da Revolução Libertadora. O Gral. Aramburu colocou o poder militar como uma instância de controle do novo governo semidemocrático e como agente de arbitragem perante sua atuação, todo isso ao redor das "regras de jogo" impostas em 1955. Não se tratava de uma reformulação dessas regras nem do papel tutelar assumido pelos golpistas, mas de uma nova modalidade operacional dessas condições e desse papel, de acordo com a situação surgida com o triunfo de Frondizi. Tal projeção, obviamente, foi consentida pelos partidos e setores não peronistas, legitimando assim a crescente institucionalização da ingerência tutelar dos militares no cenário político argentino.
Por sua parte, esta modalidade de intervenção encontrou na chamada Doutrina da Segurança Nacional (DSN)94 que se começava a difundir nos quartéis, o suporte conceptual e ideológico que serviu de chão doutrinal para adequar a prática militar aos parâmetros impostos desde a derrocada do peronismo. Em traços gerais, este corpo doutrinal convertia às instituições militares em guardiões e polícias da ordem política interna ante a "ameaça comunista" permanente que tinha emergido na região a partir da vitória da revolução cubana. Na Argentina, porém, este conceito de guerra anticomunista era entendido em forma muito ampla segundo as necessidades domésticas dos militares locais, dando lugar a uma interpretação aggiornada na que o antiperonismo se converteu em um alongamento do anticomunismo. Desse modo, a DSN serviu como instância de legitimação da intervenção política repetida dos fardados e, em particular, do objetivo de exclusão política do peronismo. Em conseqüência, sua difusão entre os fardados não implicou a reformulação dos objetivos políticos e do papel institucional que as Forças Armadas tinham assumido desde 1955, mas, pelo contrário, os reforçava e exigia só sua adequação às novas condições internacionais, a sua autonomia indiscutida e a sua projeção politicamente legitimada. Aliás, este difuso baseamento doutrinário era dividido tanto pelos gorilas quanto pelos legalistas.
Nesse quadro, o paulatino avanço militar sobre o governo frondizista encontrou seu ponto culminante nas eleições realizadas em março de 1962 através das quais se escolheram governadores em numerosas províncias do país. A jogada do presidente Frondizi consistia em permitir a participação do peronismo nessas eleições, tentando vencê-lo na areia eleitoral e com isso, se fortalecer politicamente diante o poder castrense. De todos modos, isto significava reincorporar o peronismo dentro do processo político e voltar a legitimá-lo como ator "legal" do sistema.Além disso, o eventual triunfo dos partidários do líder proscrito gerava uma profunda tensão entre o presidente e a coalizão cívico-militar antiperonista.
Refletindo essa situação, o 29 de janeiro de 1962, os secretários de Guerra, General Rosendo María Fraga, de Marinha, Contra Almirante Gastón Clement e de Aeronáutica, Brigadier Jorge Rojas Silveyra, assinaram,em conjunto com ministro do Interior, Dr. Alfredo Vítolo, e ao de Defessa, Dr. Villar, um ata na que se formalizou, entre outras coisas, a cláusula de proscrição política do peronismo.
[...] La Revolución Libertadora puso fin a un régimen negatorio de las libertades fundamentales y por un decreto-ley vigente está proscrito el partido peronista o cualquier otro que se le identifique y, naturalmente, la persona responsable directa del régimen abatido por la Revolución. El gobierno, tal como lo expresara el Excmo. Señor Presidente de la Nación y el ministro que habla, está firmemente dispuesto a impedir cualquier forma de retorno al sistema derrocado el 16 de Septiembre de 1955. El régimen de legalidad que vive el país es consecuencia del hecho revolucionario y el Gobierno va a defender esa legalidad en toda circunstancia y sin hesitar. Ello sin perjuicio de que quienes fueran partidarios del ex dictador puedan organizarse en la legalidad, sumándose a la convivencia nacional con objetivos pacíficos y democráticos. Lo que está inhabilitado es Perón y su régimen.95
Também, acerca da função política assumida pelas Forças Armadas, o mencionado documento também sintetizava o papel militar de árbitro político e de garante da mencionada condição de exclusão.
Los Señores Secretarios militares coincidieron en señalar que las Fuerzas Armadas no intervienen en el campo político ni está en su misión interferir la acción política del Gobierno. Pero ello no significa en manera alguna que estén dispuestas a permitir la restauración del régimen de oprobio derrocado por la Revolución Libertadora ni el retorno de Juan Domingo Perón ni de los responsables, conjuntamente con él, de agravios inferidos a la Nación, a la libertad y a la humanidad [...]. En este sentido, los Señores Secretarios militares señalaron que están inquebrantablemente decididos a impedir con todos los medios a su alcance el retorno al poder o a la vida política del prófugo depuesto o a la restauración del régimen oprobioso por él creado y que padeció el país. Expresaron, asimismo, que las Fuerzas Armadas ampararán y defenderán el proceso argentino de reconstrucción democrática que ha costado tantas víctimas y tantos sacrificios. Dejaron aclarado que en ningún caso su actitud estaba referida a la masa engañada y desviada sino al régimen totalitario instaurado por el ex dictador y aquellos que con él son los responsables directos del agravio inferido a la Nación, a la libertad, a la religión y a los derechos humanos.96
Este documento resultou paradigmático e refletiu com absoluta clareza o posicionamento seguido pela dirigência cívico-militar antiperonista frente a Perón e seu movimento, dado que nele ficava claramente resumida a condição de exclusão imperante no sistema político local desde 1955 e o papel político desempenhado pelos militares nesse cenário.
Pois bem, o 18 de março, as listas justicialistas triunfaram em nove das quinze províncias nas que houve eleições e, deste modo, o peronismo obteve a primeira maioria no âmbito nacional com o 32 % dos votos. A reação não se fez esperar e o 28 de março um golpe de mando levado a cabo pelos Comandantes em Chefe das três Forças Armadas derrocou ao presidente Frondizi. Durante a manhã do dia 29, o titular do Exército, Gral. Poggi, enviou um radiograma a todas as unidades de sua arma informando-lhes do fato e indicando que as razões do mesmo respondiam a que o processo eleitoral "tinha desembocado em um ponto perigoso para a democracia e para o bem comum".
Buscamos la Constitución. Nos aferramos a ella como la única tabla de salvación de todos los argentinos. Los militares de la Argentina de hoy creemos en la civilidad. Lo esperamos todo de ella y es para ella que vigilamos un proceso que había desembocado en un punto peligroso para la democracia y para el bien común. Al tomar la decisión de promover el alejamiento del Presidente, creemos salvar a la Constitución y recuperar la fe en sus principios.97
Ai se tornava a manifestar com clareza o papel militar de "vigilantes" da condição de proscrição do peronismo, a que tinha sido cerceada como conseqüência da intervenção deste setor na contenda política e, principalmente, da vitória deste em importantes distritos do país.
Neste quadro, as Forças Armadas designaram como Presidente da Nação ao Doutor José María Guido, quem até esse momento tinha se desempenhado como presidente do Senado. O 29 de março, dia anterior ao começo de seu exercício da presidência, Guido assinou um ata secreta com os três Comandantes em Chefe das Forças Armadas na que se comprometia, entre outras questões, a anular as eleições do último 18 de março; a promulgar uma série de normas aos fins de conseguir "a proscrição do comunismo, o peronismo e toda forma totalitária de governo" e a proibição para a ocupação de cargos eletivos de toda pessoa que sustentasse estas idéias; e a modificar o estatuto sindical aos efeitos de garantir a liberdade de associação sindical e proibir a atividade política dos sindicatos. Em contrapartida, os chefes militares aceitavam estes pontos e, "em virtude dos mesmos", aceitavam ao Dr. Guido como presidente da República.98
Depois de algumas mudanças na direção do Exército, este ficou nas mãos do setor anti-integracionista ou gorila e Guido, aos poucos, foi seguindo os desígnios impostos por eles. Assim, em setembro de 1962, e depois de anular as eleições anteriores, dissolveu o Congresso Nacional e convocou a eleições nacionais para escolher um novo poder legislativo a concretizar-se no 27 de outubro de 1963.
De todos modos, a irrupção militar e a anulação das eleições de março não sossegaram as divergências existentes entre as facções castrenses legalista e gorila. Pelo contrário, o fracasso da experiência frondisista para cooptar e desativar o peronismo assim como as diferentes perspectivas acerca do perfil profissional que devia ter a arma foram profundando as diferenças entre ambos setores, até que em setembro de 1962, estas desembocaram na confrontação político-militar protagonizada entre os legalistas ou azuis encabeçados pelo General Juan Carlos Onganía e os gorilas ou vermelhos dirigidos pelo General Federico Toranzo Montero e apoiado pela Marinha.99 Em um plano geral, se enfrentaram pelo percurso que devia seguir o sistema político, em particular, pela forma e a intensidade mediante o qual se devia consumar a condição de exclusão do peronismo, mas também confrontavam pela chefia da instituição.100
Os azuis continuavam a propor o caminho das eleições condicionadas e controladas mediante um tipo de tutela militar indireta, já que estavam a favor de que se escolhesse rapidamente um novo "governo constitucional". Mas também reclamavam que o Exército adquirisse um "profissionalismo militar" assinalado pela prescindencia política, pois, entendiam que na ativa participação política protagonizada por essa arma estava a principal causa das profundas divisões e dos enfrentamentos que acentuavam sua vida institucional e que cerceavam a possibilidade de que seus membros estivessem completamente dedicados às questões castrenses. Também, acusavam à condução da arma de pretender "apropriar-se do poder e instalar um governo militar por vários anos". Sintetizaram sua posição no famoso comunicado nro. 150 emitido no 23 de setembro de 1962, no que não só recusaram a alternativa golpista mas também ratificaram os termos de seu "profissionalismo" certamente tutelar e de sua singela visão de "integração" do peronismo à vida política nacional.
[...] Sostenemos que el principio de la vida constitucional es la soberanía del pueblo; sólo la voluntad popular puede dar autoridad legítima al gobierno y majestad a la investidura presidencial. Propiciamos, por lo tanto, la realización de elecciones mediante un régimen que asegure a todos los sectores la participación en la vida nacional; que impida que algunos de ellos prevalezcan por medio de métodos electorales que no responden a la realidad del país y crean el monopolio artificial de la vida política [...] que no pongan al margen de la solución política a sectores auténticamente argentinos que, equivocada y tendenciosamente dirigidos en alguna oportunidad, pueden ser hoy honestamente incorporados a la vida institucional [...]. Creemos que las Fuerzas Armadas no deben gobernar. Deben, por el contrario, estar sometidas al poder civil. Ello no quiere decir que no deban gravitar en la vida institucional. Su papel es, a la vez, silencioso y fundamental. Ellas garantizan el pacto constitucional que nos legaron nuestros antecesores y tienen el sagrado deber de prevenir y contener cualquier empresa totalitaria que surja en el país, sea desde el gobierno o desde la oposición.101
Por sua vez, os vermelhos mantinham firme sua convicção de que a única alternativa a seguir estava centrada na emergência de uma "ditadura democrática" encabeçada pelas Forças Armadas e apoiada pela coalizão de partidos antiperonistas.Além disso, recusavam as acusações de seus contendores e consideravam chave para seus objetivos manter o controle da arma.102
Depois de algumas manobras militares, os azuis saíram vitoriosos da contenda e Guido nomeou o General Onganía como Comandante em Chefe do Exército. Logo depois se anunciou a convocatória a eleições nacionais para a designação de um novo governo constitucional, comícios eleitorais que se levaram a cabo só o 7 de julho de 1963. Na ocasião, acorde com os parâmetros impostos por o legalismo azul, voltou-se a proscrever o peronismo, proibindo que a Unión Popular -partido criado pelos seguidores de Perón- apresentara candidatos presidenciais e a governador. Com isso, o poder castrense ensaiava uma nova tentativa de "integrar" o peronismo -sem Perón- à lógica "democrática" inaugurada em 1955, no quadro de uma nova experiência semidemocrática.
Nestes comícios, triunfou o candidato da Unión Cívica Radical del Pueblo (UCRP) , o Dr. Arturo Illia com tão só o 24 % dos sufrágios e se convertia, assim, em devedor do "legalismo" militar que viabilizou uma nova tentativa de controle e exclusão do peronismo. Apesar disso, sua situação não era cômoda, dado que não contava com uma ampla margem de manobra. Tinha obtido uma escassa quantidade de votos, seu partido tinha tido fluidos vínculos com os militares vermelhos, não tinha maioria própria na Câmara de Deputados e era acusado pelo peronismo, em particular, pelo sindicalismo peronista, de ser um governo com origem ilegítima. Além do mais, as Forças Armadas conservavam um amplo nível de autonomia com o fim de cumprir as condições impostas e tuteladas por esse poder militar.
As orientações governamentais e da UCRP que tendiam a reincorporar alguns militares vermelhos na condução das Forças Armadas e a percepção militar de que a administração de Illia era ineficaz para a resolução de problemas de governo, deu lugar a enfrentamentos que culminaram erosionando a capacidade de poder do presidente radical, quem teve que conviver durante quase a totalidade de seu mandato com o General Onganía como Comandante em Chefe do Exército. Além disso, esse governo também não mostrou uma afiada habilidade para controlar os ativos setores políticos e sociais peronistas, o que não deixava de constituir a questão de fundo das diferenças entre o governo e o poder militar. Ao longo de 1964, as paradas e as ocupações de estabelecimentos fabris foram permanentes e o governo se mostrou curiosamente passivo perante uma situação que rapidamente se transformou em conflitante.
Neste contexto, e diante do decaído governo radical, foi-se conformando um azeitada frente opositora constituída pelo sindicalismo dialoguista, o Movimiento de Integración y Desarrollo (MID, nova denominação que Frondizi tinha dado a seu partido político), o Partido Político Independiente (PCI, reunido em torno ao Engenheiro Álvaro Alsogaray), os militares azuis que conduziam as Forças Armadas e um conjunto de intelectuais próximos ao General Onganía.103 Não passou muito tempo para fazer-se claro que esta oposição tinha como objetivos a queda do governo nacional e a emergência de uma nova etapa de domínio militar, objetivos cuja concreção se acelerou a partir das eleições parlamentárias levadas a cabo o 14 de março de 1965, nas que triunfou a Unión Popular, obtendo o 36 % dos sufrágios contra o 29% recebido pela UCRP. A UP era um partido formado por peronistas, cuja constituição tinha estado autorizada pelo estatuto eleitoral imposto pelo mesmo governo radical.
Até esse momento, o Gral. Onganía, apesar de ter sido o ponto de confluência dos interesses essencialmente divergentes dos diferentes setores que conformavam a frente opositora e o principal referente político-institucional do bando azul que hegemonizava a condução do Exército, tinha se mostrado reticente para encabeçar uma experiência autoritária, em sintonia, inclusive, com seus argumentos legalistas. Neste sentido, sua figura à frente do Exército tinha servido como uma relativa garantia de continuidade para o governo radical. Mas, o legalismo azul não era sinônimo de subordinação ao governo civil, pois suponha a conservação de um amplo espaço de autonomia militar em função de tutelar o sistema político conforme a perspectiva castrense.
Uma detalhada manifestação desta posição a brindou o próprio Gral. Onganía durante sua intervenção em agosto de 1964 na V Conferência de Exércitos Americanos em West Point. Ai afirmou que as Forças Armadas eram o "braço forte da Constituição", mas indicou que os militares somente deviam-lhe obediência à Constituição e às leis e não aos dirigentes ou partidos que exerciam o governo institucional do país. Por sua vez, se o governo institucional extralimitava-se no exercício de suas atribuições legais, violando os princípios básicos do sistema republicano, as Forças Armadas deviam intervir no processo institucional.
La subordinación [de las Fuerzas Armadas] es debida a la autoridad del gobierno en cuanto ésta emana de la soberanía popular, en cuyo nombre la ejerce, conforme a los preceptos constitucionales. El acatamiento es debido y referido, en última instancia, a la Constitución y a sus leyes; nunca a los hombres o a los partidos políticos que circunstancialmente pudiesen detentar el poder público. Si esto fuese así, quedaría trastocada la misión fundamental que compete a las Fuerzas Armadas; dejarían de ser apolíticas y se convertirían en guardias pretorianas al servicio de determinadas personas o agrupaciones políticas [...]. Está claro, entonces, que tal deber de obediencia habrá dejado de tener vigencia absoluta, si se produce al amparo de ideologías exóticas, un desborde de autoridad que signifique la conculcación de los principios básicos del sistema republicano de gobierno, o un violento trastrocamiento en el equilibrio e independencia de los poderes, o un ejercicio de la potestad constitucional que presuponga la cancelación de las libertades y derechos de los ciudadanos. En emergencias de esta índole, las instituciones armadas, al servicio de la Constitución, no podrían, ciertamente, mantenerse impasibles, so color de una ciega sumisión al poder establecido, que las convertiría en instrumentos de una autoridad no legítima [...]104
Com isso, Onganía justificava a queda de Perón em 1955 e posicionava o poder militar como instância tutelar das condições políticas impostas pela coalizão anti-peronista depois daquele golpe de Estado.
Pois bem, a vitória eleitoral do justicialismo em 1965 pôs em evidência, uma vez mais, o fracasso ao que parecia estar destinada toda estratégia de exclusão política do peronismo que supusesse o desenvolvimento de eleições nas que se proscrevesse este setor político majoritário. Esses comícios demonstraram que a adesão popular ao peronismo era alta. E esta evidência deteriorou definitivamente o legalismo sustentado até então pelos azuis e, particularmente, contribuiu, junto ao receio de que o sindicalismo aumentasse incontrolavelmente seu ativismo opositor, para que as perspectivas do próprio General Onganía - que tinha sido transferido para a reserva em novembro desse ano- mudaram em favor da emergência de um novo ordenamento autoritário, fato que se concretizou com o golpe de Estado levado a cabo o 28 de junho de 1966.
Esse mesmo dia, os Comandantes em Chefe das três Forças Armadas, reunidos em "Junta Revolucionária", destituíram de seus cargos ao presidente e vice-presidente da Nação, dissolveram o Congresso Nacional, substituíram os membros do Tribunal Supremo [Corte Suprema de Justicia de la Nación (CSJN)] e dissolveram todos os partidos políticos do país. Também, designaram o General Onganía como presidente da República.
Assim, deu-se início à denominada Revolução Argentina durante a que se reestruturou profundamente o papel político das Forças Armadas e, com isso, seu comportamento ante o peronismo. O leit motiv da exclusão deste setor e do papel militar de garante desse objetivo se redefiniu acorde às novas condições políticas do país. Perante os fracassos anteriores das variadas tentativas por desativar politicamente o peronismo pela via "legal", se impôs no seio do poder militar a visão de que a única maneira viável para discipliná-lo política e socialmente era instaurando um regime autoritário permanente no que as Forças Armadas assumissem institucionalmente a direção do Estado e, desde ai, desenrolassem um conjunto de políticas que tendiam a reestruturar os fundamentos sociais e econômicos nos que se apoiava o "modelo populista" e que convertiam o peronismo em um ativo protagonista do cenário nacional. Dentre as metas de governo de Onganía destacava-se a de "elaborar os fundamentos necessários para que possa restabelecer-se uma democracia representativa que corrija as deformações políticas preexistentes".
Desde aquele momento, o regime autoritário surgido combinou dois objetivos centrais que o particularizaram como forma inovadora de dominação militar, a saber, repressão política e transformação econômico-social. Daqui em diante, as metas da corporação militar não se reduziram exclusivamente à desarticulação coercitiva da estrutura político-social que dava sustentação à sociedade "populista" mas também se ampliaram para a criação de novos fundamentos estruturais e para a conformação, nesse contexto, de novos sujeitos sociais dominantes. Com isso, as Forças Armadas abandonaram a solução legalista e instalaram-se institucionalmente na direção do poder estatal para levar a cabo as mudanças necessárias que permitissem "modelar" uma nova matriz de país acorde com suas perspectivas conceituais e, assim, os fardados converteram-se em agentes de transformação. Esta forma de intervenção foi, pois, a manifestação mais acabada da militarização das relações cívico-militares iniciada em 1955.105
O conceito de "segurança" especificado pelo discurso oficial se traduz na tentativa de reimplantação autoritária da "ordem social" alterada pelo peronismo, através do disciplinamento dos setores populares por este representados. Neste sentido, esta experiência configurou o que se denominou um Estado burocrático-autoritário, cujas características salientes implicaram, por um lado, a conformação de um sistema de exclusão política dos setores sociais altamente ativados, tentando desarticular coativamente sua presença política e suas bases organizacionais e, por outro lado, a constituição de um regime político de tipo autoritário no que as Forças Armadas assumiram institucionalmente o governo nacional, consolidando um projeto político e econômico desenhado e definido corporativamente no interior dessas armas e sem estabelecer um tempo de duração na implementação de tais programas. De igual maneira se consumou um programa de "normalização" dirigido a estabilizar a economia e lançar-se a um desenvolvimento capitalista auto-sustentado e basicamente articulado ao redor dos interesses dos grandes grupos financeiros e produtivos oligopólicos e com vistas a transnacionalizar a economia acorde aos padrões de acumulação capitalista internacional.106
Neste quadro, e sobre a base de uma clara distinção institucional entre a presidência da Nação e as respetivas chefias das Forças Armadas, durante os primeiro anos da administração de Onganía, se foram aprofundando as diferenças existentes entre ele e os comandantes militares, quem, pouco a pouco, foram afastados da direção do governo nacional. Em agosto de 1968, Onganía relevou os três comandantes e os substituiu por outros oficiais, eliminando, desta maneira, a Junta que o tinha designado e se posicionando como único referente do regime.
Neste quadro, por volta de 1968, o sindicalismo peronista combativo, enfrentado aos poderosos grêmios vandoristas vinculados inicialmente ao governo militar, foi ganhando posições na direção do movimento operário e reagiu empreendendo uma série de ações setoriais e planos de luta que foram se acrescentando com a aprofundamento da "racionalização econômica" seguida pelo governo. Este entendeu que tal atitude era de caráter "subversivo" e respondeu energicamente reprimindo os sindicatos confrontacionistas e tentando negociar com os "colaboracionistas". De todos modos, o crescente descontento operário e popular, teve sua cume de maior magnitude durante os fatos acontecidos em maio de 1969 e conhecidos como o "Cordobazo",107 evidenciando com isso que o governo militar achava-se longe de controlar a cada vez mais ativa protesta social e sindical. Este clima foi reforçado, por sua vez, pelo assassinato, em junho de 1969, do dirigente sindical colaboracionista Augusto Vandor e do seqüestro e posterior execução, em maio de 1970 do General (R) Pedro Eugenio Aramburu nas mãos de um comando da organização guerrilheira peronista Montoneros. À agitação político-social protagonizada pelos sindicatos industriais, as organizações estudantis e o movimento peronista, se acrescentava, então, o crescente agir de grupos guerrilheiros de esquerda e peronistas, criando um clima de incerteza e de descontrole governamental. O consenso do governo perante as Forças Armadas se foi dissipando no compasso de sua crescente incapacidade para "disciplinar" a situação político-social.
Depois destes fatos, os comandantes militares começaram a considerar que a conjuntura era preocupante, que era possível que o governo fosse desbordado pelos acontecimentos e que se a descompressão da situação política suponha uma saída repressiva, esta geraria um quadro incontrolável para as próprias Forças Armadas. Neste contexto, o 8 de junho de 1970, a Junta de Comandantes em Chefe decidiu "reassumir o poder político da República", destituiu ao Gral. Onganía de seu cargo e poucos dias depois designou em sua substituição ao ignoto General Roberto Levingston. O fez ratificando o objetivo fixado em 1966 de estabelecer "uma autêntica democracia representativa uma vez alcançadas no país as condições adequadas" e destacando que tinham surgido profundas divergências entre a Junta e o Gral. Onganía acerca da "orientação do futuro plano político que devesse canalizar a institucionalização do país dentro do quadro representativo, republicano e federal [...]", segundo rezava seu comunicado.108
Aos poucos, em meio de um clima de ampla crise social e de violência política em aumento acentuada pelo agir das organizações guerrilheiras, as diferenças entre Levingston e o Comandante em Chefe do Exército e homem forte da Junta, General Alejandro Agustín Lanusse, começaram a se profundar até que, em março de 1971, o presidente tentou destituir àquele da direção dessa arma, aduzindo o incumprimento de instruções dadas para manter a ordem interna. O exército respaldou a Lanusse e no dia 22 desse mês, a Junta decidiu reassumir em forma direta a condução do governo nacional, designando ao Gral. Lanusse, em quanto titular dessa Junta, como presidente da República.
Entendendo que as circunstâncias sociais e políticas que se impunham no país não davam lugar a nenhuma tentativa de continuidade da Revolução Argentina sem correr o risco de um desastre generalizado, o General Lanusse começou a preparar o terreno para uma transição a um governo de caráter constitucional. Procurava gerar as melhores condições políticas possíveis para o retorno dos militares aos quartéis e para encarar essa transição a um governo no que, a partir de um provável triunfo do peronismo, as Forças Armadas pudessem conservar certo poder de tutela sobre a administração resultante. O objetivo de fundo estava dado pela subordinação do peronismo às regras de jogo impostas pelo governo militar para encarar tal transição, objetivando ao desgaste de Perón e a sua posterior derrota eleitoral nas mãos das forças políticas não peronistas.
Com este sentido, o General Lanusse nomeou como ministro de Interior um destacado dirigente da UCRP, o Dr. Arturo Mor Roig, quem assumiu esse cargo contando com o respaldo da maioria do espectro político partidário e legalizou a atividade dos partidos políticos. Por sua vez, em maio de 1972, anunciou o denominado Grande Acordo Nacional (GAN) . Este era uma tentativa por dar contexto a um acordo entre os partidos políticos nacionais -incluído o peronismo-, os empresários e os sindicatos com o fim de estabelecer os fundamentos institucionais para a conformação de um governo de transição a uma democracia plena. Tal acordo estaria aberto a todo setor ou organização que rejeitasse e condenasse toda forma de violência política, em particular, a derivada do agir da guerrilha. Tratava-se, concretamente, de concertar os eixos programáticos desse governo transicional e acordar o nome do candidato presidencial comum, que, conforme o proposto tanto por Mor Roig quanto pelo próprio Lanusse, não podia ser Juan Domingo Perón nem devia pertencer à UCR nem ao peronismo e devia ser aceitado pelas Forças Armadas. O governo militar se reservava, assim, a definição das regras do mencionado acordo,109 o que fazia que este não fosse mais que uma tentativa de gerar as condições que impedissem o triunfo peronista sobre a base da proscrição de seu líder.
Em setembro de 1971, Lanusse anunciou que o dia 25 de março de 1973 se efetivaram as eleições nacionais para escolher um novo governo constitucional que assumiria dois meses mais tarde. Contudo, visto o crescente ativismo sindical e juvenil contra o governo militar e a paulatina consolidação da direção de Perón sobre o agir dos diversos setores de seu movimento, a única possibilidade de sucesso do GAN estava dada pela atitude seguida pelo veterano líder desde Espanha. Mas, esta rejeição todo tipo de acordo com Lanusse, o que significou um rotundo fracasso para o movimento tático dele e, de cara às Forças Armadas, o forçou a enfrentá-lo. Em julho de 1972, a Junta dispôs que não poderiam ser candidatos presidenciais nas eleições gerais programadas para março de 1973 aqueles dirigentes que até o 24 de agosto de 1972 se tivessem desempenhado em cargos do poder executivo nacional ou provincial e os que, para essa data, não residissem no país. Com isso, Lanusse se auto-proscrevia como candidato a presidente, mas também proscrevia a Perón. Por sua vez, em outubro, anunciou uma nova lei eleitoral na que se estabeleceu o sistema de 'ballotage' ou segunda volta para a eleição de presidente e vice, com o que procurava que, perante uma eventual segunda volta, as forças políticas não peronistas pudessem unir-se e vencer o peronismo. Por sua vez, em fevereiro de 1973, diante o iminente triunfo eleitoral do peronismo, a Junta subscreveu um documento no que declarou seu propósito de "afirmar a continuidade do processo político e de aceitar e acatar o pronunciamento que manifeste a cidadania nas urnas", respaldar a "vigência das instituições republicanas", salvaguardar a "independência e inamovibilidade do poder judicial", descartar a implementação de "anistias indiscriminadas para quem encontre-se sob processo ou sanção pela perpetração de delitos vinculados com a subversão e o terrorismo" e dividir as responsabilidades "no interior do governo" em tudo o que concernia a sua gestão, em particular, no referido à segurança interna e externa.110 Igualmente, a ofensiva castrense, montada sobre este conjunto de medidas destinadas a condicionar o processo eleitoral e a vida institucional resultante daquele, chegou a seu fim com a vitória nos comícios do 11 de março de 1973 da fórmula peronista encabeçada por Héctor Cámpora, homem de confiança de Perón.
O final da Revolução Argentina evidenciou, pois, o fracasso de todas as experiências que tendiam a excluir definitivamente ao peronismo do sistema político postas em prática pelas diferentes coalizões cívico-militares antiperonistas que dominaram o cenário nacional desde 1955 em diante. Nenhuma delas tinha conseguido estabilizar institucionalmente e legitimar socialmente uma ordem política estruturada ao redor da proscrição da força político-social majoritária, força em cujo interior, por volta dos anos 70, tinha começado a despontar e a se consolidar um ativo setor de esquerda com desígnios que não se esgotavam no retorno de Perón mas que supunham um projeto de construção do socialismo nacional.
Por sua parte, desde os primeiros anos dessa década, o surgimento do fenômeno guerrilheiro111 e seu paulatino crescimento deu-se no quadro de um processo de radicalização da ativação política e da mobilização social dos setores populares maioritariamente identificados com o peronismo.112 Isto fez que, pouco a pouco, as Forças Armadas fossem tomando parte ativa na luta contra o agir dessas organizações, inicialmente exercendo o controle e a direção operacional das forças policiais e de segurança e através do desenvolvimento de atividades de inteligência e, mais tarde, mediante a intervenção direta nas operações de repressão. Esta nova experiência, para a que os militares vinham se preparando desde mediados da década do 60, condicionou decisivamente seu desenvolvimento institucional posterior e, em particular, isso conduz à mudança no enfoque castrense sobre o peronismo; vale dizer, este deixava seu lugar de inimigo principal das Forças Armadas às organizações guerrilheiras. Mais tarde, observou-se que o tipo de estratégia e a modalidade de ação que desenrolaram as Forças Armadas durante os anos que seguiram ao golpe de 1976, no quadro da denominada "luta contra a subversão", não foi mais que a intensificação e ampliação dos planos militares concebidos no lapso que foi entre 1972 e 1976.113
A chegada do peronismo ao governo marcou o início de uma etapa acentuada pela violência, já não no âmbito do conflito existente entre o peronismo e o antiperonismo, mas no interior do movimento encabeçado pelo velho líder, entre sua asa direita e os setores da "tendência revolucionária" de esquerda. O fracasso desta experiência governamental se deu no compasso da ampla e violenta confrontação desencadeada no interior do peronismo pelo controle do aparelho governamental e partidário, processo que não pôde ser encarrilado nem pelo próprio Perón -que em outubro de 1973 assumiu a presidência da Nação, depois de eleições nacionais efetivadas sem proscrições- e que se viu substancialmente ampliado com sua morte, em 1974, e com a designação como mandatária de Isabel de Perón, sua mulher e, até então, vice-presidente da Nação. Com efeito, desde aquele momento, o peronismo ortodoxo de direita e a dirigência sindical ocuparam um lugar dominante na estrutura governamental e o enfrentamento contra os setores juvenis e guerrilheiros foi-se estendendo, ao mesmo tempo que foi-se aprofundando a caótica situação econômica e foi-se instalando uma imagem contrária à continuidade do governo.
As Forças Armadas, por sua parte, observaram com atenção e temor o desenvolvimento da guerrilha e, já no começo de 1975, consideravam que o governo peronista era incapaz de controlar a situação sem recorrer a elas. Com efeito, o 5 de fevereiro, o poder executivo promulgou o decreto "S" 261/75114 através do qual ordenou ao Comando Geral do Exército "executar as operações militares" necessárias para "neutralizar e/ou aniquilar o agir dos elementos subversivos" que atuavam na província de Tucumán e instruiu o Ministério do Interior para que dispusesse sob o controle operacional do Exército "os efetivos e meios da Polícia Federal" que fossem requeridas. Por sua parte, a 6 de outubro, o debilitado governo promulgou o decreto 2.770/75115 mediante o que se criou o "Conselho de Segurança Interna", presidido pelo presidente da Nação e integrado pelos ministros do poder executivo nacional e pelos Comandantes em Chefe das Forças Armadas, de modo de que dirigisse "os esforços nacionais para a luta contra a subversão" e a execução de toda tarefa que derivasse disso. Também, ao "Conselho de Defessa", presidido pelo ministro do ramo e integrado pelos comandantes militares, se adjudicaram novas atribuições, tais como a de "assessorar ao presidente da Nação em todo o concernente à luta contra a subversão", propor as medidas necessárias para sua implementação, coordenar com as autoridades nacionais, provinciais e das prefeituras a execução das mesmas, "conduzir a luta contra todos os aspectos e ações da subversão" e "planejar e conduzir o emprego das Forças Armadas, forças de segurança e forças policiais para a luta contra a subversão". Esse mesmo dia, também se promulgaram o decreto 2.771/75 e o decreto 2.772/75.116 Com o primeiro, facultou-se ao Conselho de Defessa a que, através do Ministério do Interior, subscrevesse com os governos provinciais convênios que "coloquem sob seu controle operacional o pessoal e os meios policiais e penitenciários provinciais" que lhe fossem requeridos para "seu emprego imediato na luta contra a subversão". E, mediante o segundo, ordenou-se às Forças Armadas a que, sob "o comando superior do presidente da Nação" exercido através do Conselho de Defessa, procedessem a "executar as operações militares e de segurança" que fossem necessárias para "aniquilar o agir de elementos subversivos em todo o território do país".
Deste modo, o governo peronista, em um quadro de absoluta debilidade, reconhecia que as forças de segurança resultavam insuficientes para conter o desenrolamento e o agir guerrilheiro e punha as Forças Armadas como a única alternativa institucional para conjurar essa ameaça. Com isto, se militarizou em forma direta o combate contra a chamada "subversão".
De todos modos, para 1975, o agir militar das forças guerrilheiras começou a minguar e seu isolamento político já era visível. Segundo fontes militares, esse ano, o ERP ainda contava com uns 5000 membros combatentes e os Montoneros com uns 1000 combatentes, embora eles conservassem um numeroso contingente de militantes políticos, sindicais, bairristas e aderentes. Outras fontes indicam que, no momento de maior desenvolvimento, ambas organizações reuniam um total máximo de 7.000 ou 8.000 membros, sem diferenciar entre membros armados e não armados, dos quais só entre 1.000 e 1.300 eram membros militares permanentes.117 Aliás, no fim desse ano, era evidente que estes agrupamentos estavam militar e politicamente derrotados.
Pois bem, nesse contexto, o pronunciado deterioro da figura de Isabel Perón, permitiu que as Forças Armadas, alertadas por esse descontrole generalizado, recuperassem a iniciativa política e, por sua vez, facilitou-se o avanço dos setores da burguesia mais concentrada, cujos interesses tinham sido excluídos da equação econômica desenhada por Perón. Para fins de 1975, os dias desse governo em descomposição estavam contados. Impunha-se no seio do poder militar a proposta de construção de uma ordem social e política alternativa ao modelo "populista".
2.2) O apogeu do "Processo de Reorganização Nacional" (1976-1980).
O 24 de março de 1976, a Junta Militar composta pelos Comandantes em Chefe das três Forças Armadas -o General Jorge Rafael Videla, o Almirante Emilio Eduardo Massera e o Brigadier Orlando Ramón Agosti- assumiu o governo, declarou caducos os mandatos da presidenta da Nação e dos governadores e vice-governadores das províncias, dissolveu o Congresso Nacional e as legislaturas provinciais, removeu os membros da CSJN, o procurados geral da Nação e os membros dos tribunais superiores provinciais, suspendeu a atividade política e dos partidos políticos assim como também a atividade gremial de trabalhadores, empresários e profissionais, tudo isso de acordo com o estabelecido na Ata para o Processo de Reorganização Nacional.118 Além disso, ordenou a detenção de Isabel Perón e intervim a poderosa Confederação Geral do Trabalho (CGT) . O dia 26, a Junta Militar, designou o General Videla como presidente da Nação.
Na Proclama do golpe, a Junta Militar indicou que a derrocada do governo constitucional respondia à necessidade de fazer frente ao profundo "vazio do poder" existente e que o propósito de fundo era o de "terminar com o desgoverno, a corrupção e o flagelo subversivo".
Frente a un tremendo vacío de poder, capaz de sumirnos en la disolución y la anarquía; a la falta de capacidad de convocatoria que ha demostrado el gobierno nacional; a las reiteradas y sucesivas contradicciones evidenciadas en la adopción de medidas de toda índole; a la falta de una estrategia global que, conducida por el poder político, enfrentara a la subversión; a la carencia de soluciones para los problemas básicos de la Nación cuya resultante ha sido el incremento permanente de todos los extremismos; a la ausencia total de los ejemplos éticos y morales que deben dar quienes ejercen la conducción del Estado; a la manifiesta irresponsabilidad en el manejo de la economía que ocasionara el agotamiento del aparato productivo; a la especulación y la corrupción generalizada, todo lo cual se traduce en una irreparable pérdida de sentido de grandeza y de fe; las Fuerzas Armadas, en cumplimiento de una obligación irrenunciable, han asumido la conducción del Estado.119
No entanto, as metas de fundo do PRN não se limitavam, só a pôr um limite à situação política imperante nem a conjurar o agir das organizações guerrilheiras. Em reiteradas oportunidades, a Junta Militar ou alguns de seus componentes expressaram sua intenção de iniciar um processo fundacional, tal como o sintetizou o Gral. Videla em ocasião de emitir, aos poucos dias do golpe, a primeira mensagem ao país como presidente da Nação.
[...] debe quedar claro que los hechos acaecidos el 24 de marzo de 1976, no materializan solamente la caída de un gobierno. Significan, por el contrario, el cierre definitivo de un ciclo histórico y la apertura de uno nuevo, cuya característica fundamental estará dada por la tarea de reorganizar la Nación, emprendida con real vocación de servicio por las Fuerzas Armadas.120
Para os comandantes militares, só as Forças Armadas podiam "reorganizar a Nação", o que supunha fechar uma etapa histórica iniciada a mediados de século e abrir uma nova sobre a base de uma ampla redefinição do sistema político e econômico do estado, objetivando a reestruturação econômica e produtiva através do disciplinamento social geral e da desarticulação política da classe operária. Em função disso, não se estabeleceram prazos, mas permanentemente se destacou que tais objetivos estavam formulados em função de garantir uma "nova ordem democrática", como o manifestou em 1977 o Gral. Videla.
Cuando se alcancen las circunstancias señaladas de sanear la economía, de asegurar el orden y la paz social, de aniquilar el terrorismo y, además, de producir algunos cambios en nuestras formas democráticas, recién será el momento de una transferencia del poder militar al poder civil, pero dejando constancia e que, aún cuando esto no signifique una discontinuidad del proceso, es nuestro deseo que los elementos civiles, en forma gradual, vayan asumiendo funciones de gobierno.121
Pois bem, o neoconservadurismo que dirigiu os destinos da economia desde 1976, impôs a concepção pela qual se afirmava que o esquema político-institucional que o poder militar pretendia mudar estava estreitamente ligado ao ordenamento econômico e social em cujo quadro tinha se desenrolado e, em conseqüência, a reforma econômica era uma condição necessária para a reforma política que se propunha a ditadura. A tarefa consistia em transformar radicalmente o esquema vigente desde mediados da década do '30, isto é, o modelo mercado-internista e industrialista, com forte intervenção do Estado.
Neste sentido, como o indicou Canitrot, "o plano econômico não foi mais que parte de um projeto político superior adotado pelas Forças Armadas como solução a longo prazo à situação de crise social à que tinha chegado na primeira metade da década dos '70". Para os comandantes militares, só um amplo processo de reestruturação política, econômica e social "de fundo" poderia gerar uma situação de governabilidade democrática.
Más allá del ejercicio primero de la represión y más allá de la decisión de permanecer en el poder todo el tiempo que consideraran necesario, las Fuerzas Armadas se plantearon la tarea de modificar radicalmente la estructura de relaciones sociales e institucionales en la que, a su entender, residía la causa primaria de la crisis.122
O modelo seguido durante o PRN se propôs uma revisão completa dessa lógica económica precedente através da liberalização total dos mercados, a abertura da economia à competência exterior e a eliminação dos privilégios e protecções estatais às políticas de industrialização implementados até então. O caminho seguido consistiu na redefinição do Estado, pretendendo subordinar e adaptar a economia local ao processo de acumulação dominante no contexto internacional. Eliminou-se toda forma de redistribuição do ingresso desde o Estado aos setores populares, flexibilizou-se o mercado de trabalho e orientou-se a demanda estatal para as empresas oligopolistas que formavam parte dos grandes grupos econômicos altamente concentrados e diversificados.123
Tudo isso provocou uma profunda transformação na estrutura econômica. Tratou-se de uma manifesta política de desarticulação e liquidação da pequena e mediana indústria a favor de uma radical dinamização dos setores exportadores agropecuários e industriais reunidos em torno aos grandes grupos econômicos e, em especial, dos setores financeiros-especulativos. Deste modo, o processo de industrialização que tinha caracterizado à economia argentina durante 50 anos encontrou seu ponto de ruptura definitivo nas políticas aplicadas a partir de 1976. A abertura acelerada da economia e a reforma geral do mercado de capitais determinaram a absoluta primazia da valorização financeira do capital sobre a valorização produtiva, fazendo que a produção industrial deixasse de ser a atividade central da economia no compasso da brusca redução do mercado interno e da queda da inversão pública e privada. Enquanto isso, o aumento dos subsídios e privilégios concedidos pelo Estado aos grandes grupos econômicos provocou uma abrupta concentração e centralização de capital em favor destes atores e um processo de acelerada oligopolização dos mercados e, em particular, da produção industrial.124
Isto é, a queda do salário real e o aumento do desemprego, somado à desindustrialização da pequena e mediana empresa, geraram uma profunda desestabilização do mercado de trabalho e, com isso, se foram desarticulando as bases econômicas de sustentação da classe operária. Ao mesmo tempo, a expansão das novas frações do capital industrial e financeiro jogaram a favor da constituição de um novo poder econômico montado sobre a demanda regulada pelo Estado -a chamada "pátria contratista" e a "pátria financeira"- e pelo mercado externo -em particular, os setores dedicados às exportações de produtos industriais-.125
Como se disse, o modelo econômico do PRN foi parte de um projeto político global orientado centralmente à mudança da estrutura das relações sociais e das condições político-institucionais que tinham servido de base de sustentação do modelo populista. Neste sentido, o objetivo das Forças Armadas esteve dado pelo disciplinamento social e político dos setores populares em geral, mas objetivando em particular a classe trabalhadora. Isto concretizou-o não só suprimindo as condições econômicas que convertiam esta classe em um ator social chave, mas voltando também todo o peso da repressão política sobre seus componentes mas ativos e sobre as organizações sindicais que a representavam.
Em função destes objetivos, a ditadura do processo desatou, desde o aparelho estatal, a violência terrorista mais intensa e abarcadora da América Latina. As metas propostas foram alcançadas mediante o método do encarceramento e tortura dos membros das organizações sindicais mais combativas e, em grande número de casos, seu posterior "desaparecimento". Estes fatos se produziram junta à maciça intervenção dessas instituições gremiais e de suas poderosas obras sociais, a proibição da atividade gremial e o estabelecimento, em forma permanente, de forças policiais e militares nas grandes fábricas e centros produtivos. Um dado significativo do direcionamento da repressão foi que mais da metade do total dos desaparecidos pertencia a este setor social.126
Deste modo, o terrorismo de Estado não consistiu, como interpretou-se desde as esferas do poder militar, em uma resposta lógica e proporcionada ao agir da "subversão". As características do maquinário repressivo estatal e a quantidade de vítimas desse sistema refletiram a magnitude do "genocídio" produzido e, em conseqüência, demonstraram o contrário. Entre 1976 e 1979, foram desaparecidas perto de 9000 pessoas identificadas.127 Outras 1898 pessoas foram assassinadas e seus cadáveres foram encontrados e identificados posteriormente128 e calcula-se que existiram entre 5.000 e 9.000 pessoas cujos desaparecimentos não foram denunciados.129 Isso indica que ao longo do período mencionado na Argentina houve entre 16.000 e 21.000 pessoas mortas pela repressão do processo.
Além disso, nos começos de 1977, o Gral. Videla emitiu a Diretiva Secreta 504/77, dentro do âmbito de sua arma, na que reconheceu que, para aquele momento, as organizações guerrilheiras encontravam-se "virtualmente aniquiladas", apesar do qual propôs a continuação da "Estratégia Nacional Contrasubversiva" já que, o PRN precisava "tempo para alcançar seus objetivos". Por sua vez, nesse documento também previa que os custos políticos da ação militar desenvolvida pela ditadura dificultavam o logro dos objetivos do regime, os que iam "muito além da simples derrota da subversão", mas que, de todos modos, havia que afrontá-los.130
A magnitude desta experiência coercitiva requereu da montagem de um extenso aparelho repressivo, o que foi estruturado em torno a grupos operativos formados por membros das Forças Armadas e de segurança encarregados do planejamento e implementação das ações levadas a cabo nos centros clandestinos de detenção e tortura, a cargo de oficiais superiores e médios e de suboficiais diretamente dependentes dos comandantes da Junta Militar. Todo isso se organizou dividendo o território nacional em zonas e subzonas controladas institucionalmente pelas mesmas Forças Armadas.131
Este sistema contou com duas características não existentes em outros casos latino-americanos. Por um lado, a repressão se desenrolou através de, e desde, as estruturas do Estado.132 Por outro lado, a condução e o funcionamento do terrorismo estatal foi responsabilidade institucional das Forças Armadas em seu conjunto. Estas características refletiram-se no discurso oficial ao longo de todo o PRN. Em numerosas ocasiões, os membros de Junta Militar exaltaram publicamente o compromisso das instituições armadas com a "luta contra a subversão". No entanto, apesar do caráter estatal e institucional da repressão, esta se desenrolou através de uma metodologia criminal e clandestina.
O 28 de abril de 1983, os três Comandantes em Chefe deram a conhecer o "Documento final de la Junta Militar sobre a guerra contra a subversão e do terrorismo", em cujas conclusões reconheceram que as Forças Armadas intervieram no processo repressivo em forma "orgânica", sob seus "comandos naturais" e como "ato de serviço", com o que ficou assentado que a participação geral dos fardados na repressão ilegal enquadrou-se na obediência de ordens formuladas pelas respetivas conduções dessas instituições. Estas manifestações indicaram que, efetivamente, a orientação política do PRN superava os desígnios da "luta contra a subversão" e que as Forças Armadas entendiam a emergência do regime militar como a única alternativa frente à "anarquia" imperante, isto é, como um caminho inevitável para controlar a desordem social e, principalmente, como um meio para restabelecer uma "democracia plena". Por sua parte, assim o sintetizaria alguns anos depois quem se iria a desempenhar como último presidente militar do regime de-facto iniciado em 1976, o Gral. Reynaldo Bignone:
El Proceso de Reorganización Nacional interrumpió un período constitucional reemplazando las Fuerzas Armadas a las autoridades legalmente constituidas. Esto sucedió porque el poder se había deteriorado a tal extremo que la alternativa de ese momento era esa solución o la anarquía. No hace falta aclarar que las Fuerzas Armadas no pretendieron instalar indefinidamente un régimen distinto del democrático y menos modificar las bases constitucionales de la organización nacional. Se trataba de un remedio transitorio que, después de aplicado, serviría para restablecer la democracia plena. Sus objetivos básicos podrían resumirse así: Instituciones constitucionales revitalizadas que ubiquen el interés nacional por encima de sectarismos o personalismos. Reafirmar los valores de la moral cristiana, la tradición nacional y la dignidad del ser argentino. Erradicar la subversión y las causas que la favorecen. Vigencia del orden jurídico y social. Conseguir una situación socioeconómica que asegure la capacidad de decisión nacional, la realización del hombre; donde el Estado controle las áreas que hacen a la seguridad y el desarrollo con participación fluida en la explotación de los recursos de los capitales privados. Igualdad de oportunidades y justicia social. Relación armónica entre Estado, Capital y Trabajo. Ubicación internacional en el mundo occidental y cristiano. Se trataba de metas muy ambiciosas, acaso demasiado para lo que debió ser una período transitorio pero, al fin y al cabo, de carácter republicano y democrático.133
Houve outros aspectos importantes do processo político desenvolvido pela última ditadura que caracterizaram com precisão a dinâmica e a lógica do comportamento político das Forças Armadas em seu interior, a saber, o esquema institucional de organização do regime e a eficácia governamental no exercício do governo.
O signo distintivo desta ditadura esteve dado pelo compromisso institucional da Forças Armadas na ocupação do aparelho do Estado. A magnitude e o ativismo da presença e ingerência do poder militar sobre a estrutura administrativa estatal foram inéditos em comparação com as experiências autoritárias precedentes.134 Isso derivou do papel estratégico que o poder militar lhe outorgou ao Estado em função de consumar as transformações políticas e sociais que a ditadura tinha-se proposto desde suas origens. Tratou-se de uma militarização extrema do Estado, o que, ademais de prestar conta do elevado nível de autonomia institucional alcançado pelas Forças Armadas com relação à sociedade política e civil, também configurou um fator determinante da dinâmica que foram adquirindo os processos decisórios dentro do regime militar.
Tanto o esquema institucional de poder desenhado e implementado quanto a presença multitudinária de fardados na estrutura do Estado objetivou, por um lado, a funcionalizar a intervenção institucional das Forças Armadas no aparelho governamental e administrativo e, por outro, a evitar todo tipo de conflitos institucionais que carregassem uma fragmentação de poder castrense, tentando gerar uma lógica de funcionamento que pudesse neutralizar as tradicionais diferenças e rivalidades políticas que enfrentaram em muitas ocasiões as diferentes forças militares entre si e impedir, desse modo, um nível de anarquia decisória e política que obstaculizasse a tarefa proposta.135 Em conseqüência, o formato institucional desenhado e desenrolado pela condução do PRN organizou-se ao redor da ocupação e controle direto da estrutura administrativa, operativo-repressiva e produtiva do Estado central por parte das três forças militares, com igual grau de responsabilidade política e institucional. Este mecanismo foi visto como uma maneira eficaz de comprometer às diferentes armas no processo governamental em marcha e, desse modo, se assegurar um sólido apoio institucional ao regime militar, perante eventuais conflitos políticos derivados do exercício do governo.
Nesse contexto, a Junta Militar constituiu-se na instância superior da nova institucionalidade inaugurada. Com efeito, através do Estatuto para o Processo de Reorganização Nacional dado a conhecer o mesmo 24 de março de 1976 e imposto pelos comandantes "em exercício do poder constituinte", anulou-se a Constituição Nacional e proclamou-se à Junta Militar como "órgão supremo da Nação", a cargo do Comando em Chefe das Forças Armadas e com a responsabilidade de designar ao presidente da Nação e de removê-lo e substitui-lo "quando o considerar necessário". Vale dizer que neste esquema não tinha nenhuma instância legal ou institucional, nem sequer a norma constitucional, acima da Junta Militar, a que, deste modo, subordinou, controlou e dirigiu o funcionamento dos poderes executivo, legislativo e judicial e se atribuiu, ao mesmo tempo, a direção centralizada das instituições castrenses e o poder constituinte do regime. Dessa maneira, governo estatal, poder constituinte e condução militar se afundavam em um só e mesmo degrau institucional, fazendo coincidir permanentemente a cúspide do Estado com o comando superior das Forças Armadas. Tudo isto, em definitiva, formalizou um fato de vital transcendência política e institucional para a legalidade ditatorial, a saber, as Forças Armadas assumiram institucionalmente a direção -e, por conseguinte, a responsabilidade- política do ordenamento autoritário surgido em março de 1976. Tratou-se, em verdade, do "governo das Forças Armadas", assim como o descrevia o discurso castrense. Nesse contexto, a Junta Militar concentrou todos os recursos institucionais e legais existentes no Estado, exercendo, de fato, o conjunto das atribuições de todos e cada um dos poderes desse Estado. Configurava, pois, um poder supremo só limitado e mediado, de fato, pelos acontecimentos e pela vontade daqueles que compunham esse corpo.136
Com efeito, a autoprocalamação da Junta Militar como órgão supremo da Nação constituiu a expressão mais acabada da existência de um poder que não reconheceu nem limites nem responsabilidades perante a sociedade. Ademais, esta institucionalidade, não deixou nenhum espaço legal para a atividade política da sociedade. A oposição político-social não teve nenhum tipo de representação institucional dentro do regime e a posterior reativação política dessa oposição se iniciou e se desenvolveu sempre fora das margens da legalidade autoritária e a partir do debilitação dos mecanismos de controle da ditadura, em particular, a partir do seu colapso.137
Pois bem, sobre o segundo aspecto, isto é, sobre a eficácia no exercício do governo, se observou que durante o PRN a cúpula militar mostrou uma iterada incapacidade para articular uma elite administrativa e governamental eficiente no exercício do poder.138 Aos efeitos de equilibrar a participação militar na estrutura de governo, a Junta Militar decidiu a divisão tripartite entre as três forças de todos os cargos governamentais, desde os ministérios até os municípios. Com isso, ademais, se intentou eliminar a tradicional rivalidade política existente entre as diferentes armas e articular uma relação estável entre a Junta Militar e o resto das Forças Armadas. Contudo, os resultados foram outros. Ao pouco tempo, o Estado, em particular, a estrutura de governo, se converteu em cenário de enfrentamentos políticos entre as diferentes armas, gerando uma virtual fragmentação institucional e uma repetida ineficácia administrativa. As decisões governamentais, geralmente, foram o resultado de imposições surgidas de conflitos internos de cada arma e inter-forças, dando lugar a uma lógica política que esteve cruzada pela primazia dos interesses corporativos e setoriais da cada membro ou setor da estrutura militar. O aparelho estatal foi parcelado por estes atores, dividendo o em áreas que eram consideradas como um patrimônio privado de cada arma ou setor.139
Como resultado disso, o sistema decisório estatal, ao depender de instâncias tão heterogêneas e contraditórias, foi subordinado a uma multiplicidade de lógicas e interesses políticos quase sempre divergentes. Isto afetou a implementação de políticas públicas e, somadas à incapacidade demonstrada pelos comandantes militares para resolver conflitos sociais e políticos ou para estabelecer vinculações necessárias com a sociedade política com o fim do desenvolvimento dos objetivos propostos, fizeram que a crise governamental e a instabilidade do regime fossem padrões reiterados durante todo o período autoritário e impediram, nas instâncias finais da ditadura, a posta em prática de iniciativas que tendiam a garantir uma saída política que fosse controlada pelas Forças Armadas.
Em suma, com o golpe de 1976 se completou a espiral militarista iniciada em 1966. Tratou-se da ditadura mais repressiva e transformadora da história da Argentina e significou o ponto mais alto da hegemonia política castrense. Constituiu, ao mesmo tempo, uma quebra no agir do poder militar, já anunciado no golpe de 1966, não só pela tendência autodefinida e auto-sustentada da ingerência castrense dentro do sistema político, mas também e, particularmente, pela capacidade de reconstituição das condições de dominação social, a redefinição do papel do Estado e a reestruturação social e política que implicou esse agir, no quadro da mais cruel experiência de terrorismo de Estado observado no Cone Sul. Em 1955 e em 1962, as Forças Armadas derrocaram os governos de Perón e de Forndizi, respetivamente, e sentaram os parâmetros sobre a base dos quais funcionou o sistema político da época, mas não exerceram o poder em forma direta. Ao passo que, em 1966, as Forças Armadas exerceram institucionalmente o governo nacional no quadro de um regime autoritário austentado por elas. E em 1976, finalmente, se estabeleceu um governo das Forças Armadas, estruturado para produzir uma profunda transformação na vida política e na sociedade argentina.140
2.3) A transição para a democracia (1980-1983).
A transição do autoritarismo inaugurado em 1976 para o ordenamento democrático instaurado em 1983 se estendeu desde março de 1980, momento em que o então presidente da Nação, o General Videla, convocou a alguns setores da oposição ao início do diálogo político, até dezembro de 1983, quando Raúl Alfonsín assumiu como presidente constitucional.
O primeiro período transicional se estendeu desde a mencionada convocatória ao diálogo político efetuada por Videla até a chegada à Casa Rosada do General Viola, segundo presidente militar do PRN. Ao longo desta primeira etapa, apesar do deterioro acelerado da economia nacional, do relativo isolamento governamental entre as principais corporações representativas do capital e do aprofundamento dos enfrentamentos entre diferentes setores e frações políticas no interior do regime, as Forças Armadas mantiveram um controle político pleno do cenário transicional. Já em março de 1979, a Junta Militar se tinha comprometido a estabelecer vínculos formais com dirigentes partidários de modo de procurar "a definitiva solução institucional argentina".
Nesse contexto, Videla abriu um tíbio processo de abertura formal que centrou-se no início de um diálogo político com "personagens" dos partidos tradicionais, deixando claramente expressado que essas conversações não procuravam uma democratização do sistema autoritário nem permitiriam que se convertessem em uma instância de avaliação do regime militar e de seu desenvolvimento. Nem sequer supunha nenhum tipo de negociações para a reinstauração da atividade política e partidária. Tratava-se, em verdade, de uma tentativa pouco elaborada de busca de consenso respeito do modelo de país posto em marcha desde 1976. Desse modo, esta aproximação, controlada e medida desde as esferas governamentais, se enquadrou dentro dos desígnios políticos e econômicos do PRN, cerceando-se de antemão a possibilidade de uma reativação política que apontasse a uma transição democrática.
O objetivo de Videla era dar-lhe "[...] conteúdo político ao Processo para dotá-lo de transcendência e, se fosse possível, também de descendência".141 A tal efeito, o 19 de dezembro de 1979, a Junta Militar aprovou as "Bases Políticas das Forças Armadas para o Processo de Reorganização Nacional", prévia consulta a um conjunto de dirigentes dos partidos políticos mais importantes, tais como Ricardo Balbín, Arturo Frondizi, Ángel Robledo, Oscar Albrieu, Rodolfo Tecera del Franco, Américo Ghioldi, Francisco Manrique, Rafael Martínez Raymonda, Alberto Natale, Luis Rubeo, Elías Sapag, Guillermo Fernández Gil, Horacio Guzmán, René Balestra e outros. Todos eles consideraram válidos os esforços militares para encarar uma "saída política" ao regime. Nesse documento, se estabeleceram certos critérios para "completar a normalização político-institucional da Nação" e, para isso, se indicou como necessário iniciar um "diálogo como instrumento apto de consulta e informação, para possibilitar assim o alcance de coincidências básicas necessárias para a solução política futura do país".142
O eco positivo que teve a proposta militar entre as principais figuras dos partidos tradicionais terminou legitimando a ação governamental no campo político e econômico. Nem os partidos nem seus dirigentes encararam a proposta militar assumindo uma posição comum que reclamasse a democratização do regime ou que fizesse menção às seqüelas do terrorismo de Estado. Pelo contrário, não foram escassas as vezes em que numerosos dirigentes reivindicaram a ação militar "refundacional" perante o passado, tal como o tinha feito, em outra ocasião, Frondizi:
[...] seguimos convencidos de que las Fuerzas Armadas están llamadas a cumplir ese rol de dar impulso inicial a la remoción de todo lo caduco y dar al país una democracia real; una democracia que no sea una ficción y un entretenimiento de dirigentes [...]. De allí que mal podría interpretarse nuestra posición como una propuesta de volver al electoralismo.143
Nesse contexto, entre março e dezembro de 1980, Videla e o ministro do Interior, General Albano Arguindeguy, levaram a cabo uma série de reuniões com os dirigentes mais representativos do campo político e social. Em maio, concorreu o principal dirigente da UCR, Ricardo Balbín, a entrevistar-se com o ministro Arguindeguy. E em agosto, concorreram alguns dirigentes nacionais do PJ apesar de ser desautorizados pelo titular desse agrupamento, o dirigente Deolindo Felipe Bittel. Entre agosto e outubro, por sua vez, também se reuniram com dirigentes sindicais do setor colaboracionista. Por sua parte, alguns dirigentes e partidos -o próprio Bittel, Oscar Alende e outros- que não participaram da iniciativa, reagiram contra a mesma e reivindicaram a necessidade de reinstitucionalizar o país "sem condicionamentos" por parte do governo militar.
Sobre a convocatória posta em marcha pelo regime durante esta primeira fase transicional, o Gral. Bignone, alguns anos mais tarde, diria que os participantes do diálogo político não só não exigiram um calendário eleitoral, mas também reconheceram "o atuado pelas Forças Armadas para erradicar o terrorismo".
La síntesis de las principales opiniones recogidas puede ser esta: No hubo reticencias para prestarse al diálogo; los interlocutores manifestaron su satisfacción por haber sido convocados. Recalcaron su confianza en las intenciones del gobierno al efectuar la convocatoria. No hubo ningún planteo que indicara urgencias electorales. Todos manifestaron su voluntad de seguir colaborando para profundizar los diversos temas. Hubo reconocimiento para lo actuado por las Fuerzas Armadas para erradicar el terrorismo, considerando el capítulo de la lucha contra la subversión como cerrado y que los logros conseguidos tornaban al tema irreversible.144
Em verdade, as crônicas jornalísticas da época prestaram conta da veracidade das afirmações do então Secretário Geral do Exército.145 Ficava claro, pois, que toda iniciativa política se achava em mãos dos fardados e que a maioria da dirigência civil, salvo algumas exceções, não se tinha mostrado disposta a superar nem sequer os limites do discurso militar.
A segunda etapa transicional se iniciou com a chegada ao governo militar do General Eduardo Viola, o 28 de março de 1981. Desde então, se iniciou uma tênue tentativa aberturista, embora, desde um começo, Viola afirmou que não tinha sido designado para criar uma "saída política" ao PRN mas para continuá-lo. A 1 de julho, a Junta Militar entregou lhe um documento ao presidente que continha as principais pautas para retomar o diálogo político iniciado por Videla, mas, esta vez, não com personalidades mas com as autoridades dos principais partidos políticos nacionais.
Concomitantemente com a continuidade dialoguista dos chefes castrenses, o 17 de junho, a UCR convocou os partidos políticos e os setores sociais, militares e intelectuais a elaborar conjuntamente uma estratégia tendente a "resgatar a democracia". Esta iniciativa culminou com a formação, o 14 de julho, da chamada Multipartidária, organismo constituído pela própria UCR, o PJ, o MID, a Democracia Cristiana (DC) e o Partido Intransigente (PI) . O 28 de agosto, este agrupamento lançou uma "Convocatória ao país" na que se propunha superar as antinomias do passado e restabelecer o estado de direito através da reinstitucionalização democrática.
Se impone superar las estériles antinomias y los desencuentros que venimos arrastrando en las últimas décadas [...]. Serán inútiles los agravios recíprocos y el intento de mantener la sociedad argentina dividida en réprobos y elegidos; todos debemos asumir nuestros errores y nuestros aciertos [...].146
A Multipartidária não pronunciou-se, contudo, sobre o que despontava como a problemática mais álgida das relações entre militares e civis durante a transição, isto é, as violações aos direitos humanos e as desaparições de pessoas durante a ditadura ainda em curso.
Era evidente que as visíveis contradições e conflitos pelos que atravessava a frente governamental e o poder militar alimentaram a decisão dos referidos partidos políticos de formar a Multipartidária, a que se apresentava como uma instância decisiva para a articulação de uma oposição política com suficiente poder e capacidade como para forçar os militares a negociar os limites, os mecanismos e as condições de uma transição para a democracia. No entanto, muito longe destas preocupações se desenvolveu o agir político da Multipartidária. Ela nunca deixou de ter uma participação relativamente subordinada à lógica e ao discurso militar, nem conseguiu posicionar-se como uma instância de oposição com a qual o regime se tivesse forçado a pactuar a saída democrática.
Por sua parte, o General Viola, em agosto de 1981, chamou a uma nova ronda de diálogo político convidando os dirigentes dos principais partidos nacionais. Além do mais, criou o Movimento de Orientação Nacional (MON) , que constituiu uma frustrada tentativa do Exército de constituição de uma força política que lhe permitisse ao regime reformular o cenário político em favor de garantir uma base de sustentação política às projeções imaginadas pelos governantes militares, perante o aumento do protagonismo dos partidos políticos reunidos na Multipartidária. De todas maneiras, em meio de uma situação caracterizada por uma repetida crise econômica e pela incapacidade e precariedade de um governo que não conseguia pôr limite a seus conflitos internos, nenhuma destas tentativas proliferou e, em novembro, todos estes esforços se desvaneceram drasticamente quando Viola foi vítima de um golpe de Estado no interior do próprio regime autoritário -"golpe dentro do golpe"-, e foi deposto e substituído pelo General Leopoldo Fortunato Galtieri, no 22 de dezembro de 1981.
Pois bem, Galtieri, compreendeu que a profunda crise do governo militar comprometia seriamente a continuidade do PRN e considerando que as tentativas aberturistas de seu predecessor tinham obstaculizado essa continuidade, se mostrou disposto a recuperar a iniciativa militar fortalecendo a figura presidencial e reivindicando os desígnios iniciais do PRN. Em verdade, não renunciou a criar uma herança política ao regime militar, mas descartou desde o começo a orientação dialogista de Viola. Com a chegada de Galtieri à presidência da Nação tinha triunfado a facção militar "dura", partidária de desarticular as concessões políticas dadas pela gestão anterior à oposição.
Por sua parte, visto o deterioro político do governo militar e o lineamento assumido pelo novo presidente de-facto, a oposição política e social ao regime começou a tomar impulso maior. Nesse quadro, no 16 de dezembro de 1981, a Multipartidária deu a conhecer um documento titulado "Antes de que for tarde demais" no que exigiu o levantamento da vedação política, a legalização dos partidos políticos e a necessidade de convocar a eleições nacionais. Mas ai também se indicou que a necessária "unidade nacional" devia contemplar as Forças Armadas como um ator político mais que era necessário integrar ao futuro processo de democratização.
Tal reclamo (democrático), así como lleva implícita la crítica al criterio de que sólo gobierne un sector, o más exactamente un grupo minoritario y asilado de los intereses y aspiraciones del cuerpo social, es también una propuesta de unidad nacional. Se propone extender la superación de las antinomias partidarias hacia todas las clases y sectores de la sociedad y hacia todas sus instituciones fundamentales, entre las que están las Fuerzas Armadas. Éstas, al mismo tiempo que son responsables objetivas de las gravísimas desviaciones de la actual gestión son, a su vez, víctimas. Una política que mina los cimientos de la Nación no puede, naturalmente, dejar indemne a sus Fuerzas Armadas.147
Por sua vez, fazendo-se portador da crescente demanda formulada pelos organismos de direitos humanos, mas fazendo uma interpretação ambígua, o organismo se referiu à repressão e reclamou moderadamente uma "explicação" acerca do desaparecimento de pessoas, não sem antes justificar o agir militar perante o fenômeno da "subversão".
La etapa de la subversión deshumanizada y violenta ha concluido. Junto a la acción de las Fuerzas Armadas existió el firme rechazo de la conciencia del pueblo que supo ver en la subversión la expresión de la desmesura, la insensatez y el crimen. [...]. Tras un ciclo de dolor y muerte para toda la familia argentina, víctima del terrorismo y la represión, resuena el clamor por la represión que desconoció derechos humanos y por la justicia nunca satisfecha de miles de desaparecidos cuyos destinos se desconocen, respecto a los cuales se hace necesaria una explicación a sus familiares y al país.148
O dia 20 de janeiro, a Multipartidária lançou outro documento titulado "A paz tem um preço, é a Constituição Nacional", no que reafirmou as posições do documento anterior, mas teimou na crítica à política econômica e declarou a vontade de "mobilizar as energias do Povo argentino" a fim de reafirmar os objetivos assinalados, sempre no quadro da Constituição Nacional. Desde esse momento, a cauta atitude inicial se combinou com o exercício de certa pressão moderada a favor da continuidade da abertura iniciada por Viola através do diálogo político.
Esta iniciativa, somada à crise militar, gerou um profundo debate no interior da Multipartidária, em torno ao qual articularam-se duas posições. Estavam quem consideravam necessário assumir um perfil opositor mais crítico, alentando a mobilização social e política e ampliando o organismo até converti-lo em uma multisetorial netamente opositora. Nesta posição se alinhava o PI, parte do PJ e da DC. Ao passo que, o MID, a UCR, outra parte do PJ e da DC, assumindo uma atitude moderada, se mostravam dispostos a atenuar a crítica, desalentar e controlar a mobilização em flor e não eram partidários de ampliar o organismo. Desde então e até a instauração democrática de 1983, primou a última posição.
Afastando-se desse perfil e acorde com o estado de mobilização social que se vivia então, a oposição sindical ao regime assumiu uma política de aberta confrontação, a que paulatinamente se foi ampliando e profundando, até que, o 30 de março de 1982, a CGT levou a cabo uma greve e mobilização geral que rapidamente se converteu em um grande fato político contra o regime militar. Isto mostrou o descrédito social pelo que atravessava o PRN. Por sua parte, era cada vez mais ativa a mobilização protagonizada pelos organismos de direitos humanos, que condenavam abertamente a ditadura e faziam responsáveis às Forças Armadas pelo "terrorismo de Estado" desatado na Argentina.
Perante este clima, alguns dias antes, a Junta Militar, sob o influxo de Galtieri e da Marinha, comunicou que se ia estudar a possibilidade de encaminhar o processo político para a democracia em forma gradual e progressiva. Com isso, o poder militar expressou sua intenção de produzir, frente à crítica situação do regime, uma saída política, mas o fazia guardando para si uma ampla margem de controle sobre os tempos, ritmos, e procedimentos da abertura e pretendendo condicionar as tendências da mesma. Mas o caminho escolhido para isso se conheceu o 2 de abril de 1982 quando numerosas tropas das Forças Armadas recuperaram militarmente as Ilhas Malvinas e se iniciou a confrontação bélica do Atlântico Sul contra Grã-Bretanha. Deste modo, a condução militar do PRN recuperou a iniciativa política e, sobre a base de uma forte propaganda de caráter "nacionalista e anticolonialista", conseguiu gerar um forte consenso social e partidário em favor da decisão consumada.
Perante este fato, a Junta Militar, entendeu que contava com uma ampla margem de manobra tanto militar quanto diplomática, já que considerava que Inglaterra responderia através de uma protesta diplomática mas não tentaria recuperar militarmente as ilhas austrais e que os Estados Unidos depois do ativo apoio argentino à estratégia contra-insurgente levada a cabo por esse país em Centro América, respaldaria à Argentina e impediria que Grã-Bretanha iniciasse ações militares.149 No entanto, contra as predições dos chefes militares argentinos, aos 15 dias da invasão, Inglaterra dispôs unilateralmente uma "zona de exclusão" de 200 milhas ao redor das ilhas Malvinas e enviou uma força aeronaval e um numeroso contingente de tropas de elite compostas por infantes de marinha, pára-quedistas e soldados mercenários de modo de recuperar militarmente o arquipélago. A fins de abril, já na zona, as forças britânicas iniciaram um bombardeio constante sobre as posições argentinas nas ilhas, enquanto que a diplomacia norte-americana tentava infrutuosamente convencer ao governo argentino de retirar as tropas do lugar, até que, finalmente, o 1º de maio, Estados Unidos condenou à Argentina pelo "uso ilegal da força", impôs sanções econômicas contra o país e brindou apoio logístico, operativo e de inteligência à Inglaterra. Ao dia seguinte, um submarino nuclear inglês atacou e afundou o cruzeiro argentino ARA Gral. Belgrano, que navegava por fora da zona de exclusão imposta pela potência européia, e provocou a morte de 400 marinhos. Alguns dias mais tarde, aviões da Marinha argentina atacaram com mísseis à frota britânica e provocaram o afundamento do destrutor Sheffield, fato no que morreram 20 marinhos ingleses.
Estas ações bélicas desandaram os esforços diplomáticos levados a cabo pelo secretário geral da Organização de Nações Unidas (ONU) , Javier Pérez de Cuellar, e pelo governo peruano encabeçado por Fernando Belaúnde Terry, com o fim de solucionar o conflito pela via pacífica. Assim, a partir do 21 de maio, as tropas britânicas conseguiram desembarcar nas ilhas e iniciaram um avanço terrestre sobre as formações argentinas, até que o 14 de junho, o General Mario Benjamín Menéndez, a cargo das tropas locais, rendeu-se às forças britânicas. A Argentina tinha perdido a guerra austral e la ditadura iniciada em 1976 começava a entrar em colapso.
Pois bem, frente ao conflito bélico, nenhum dos partidos políticos que conformavam a Multipartidária assumiu uma posição diferenciada da que tinha o governo militar. Pelo contrário, este organismo manifestou seu total apoio à recuperação das ilhas austrais, deixando em um plano difuso a consideração do quadro político no qual tinha-se decidido tal aventura. A maioria da dirigência política nacional respaldou a estratégia castrense e, desse modo, Galtieri conseguiu um amplo consenso para sua iniciativa e para sua gestão militar, tal como o sintetizou o titular do radicalismo, Carlos Contín.
[...] a las Fuerzas Armadas, vencedoras o con un revés, las hemos de recibir en triunfo porque han recuperado el prestigio del país [...]. Nosotros hemos de avalar lo que hagan las Fuerzas Armadas ya que lo importante es que hoy el país está totalmente unido.150
O único dirigente que tomou distância do fato protagonizado pelo governo militar foi o radical Raúl Alfonsín, titular da corrente interna Renovación y Cambio, até aquele momento minoritária na UCR. No 27 de maio, seguindo o tom fortemente crítico contra a direção de seu partido, Alfonsín disse que "o episódio das Malvinas [...] não deveu sofrer a depreciação de ser utilizado para justificar sua complacência com o regime".151De todos modos, a derrota político-militar de Malvinas marcou o início da "ruptura" do regime militar inaugurado em 1976. A crise na que se viram afundadas as Forças Armadas e, em particular, o governo militar se converteu rapidamente em uma crise do regime. A virtual fragmentação do poder militar acelerou os tempos políticos da transição. A pretensão castrense de articular uma saída política controlada pelas Forças Armadas se diluiu no mesmo momento em que se soube da rendição das tropas argentinas no Atlântico Sul. Apesar do poder militar não abandonar a idéia de manter certo protagonismo na democratização política que se impunha, a brusca redução das margens de manobra disponíveis e as tensões e enfrentamentos que se suscitaram no interior do aparelho militar, obrigeram-no a iniciar uma saída política com condicionamentos maiores aos pretendidos. Derrotadas militarmente e fracionadas politicamente, as instituições castrenses foram cenário de uma profunda crise profissional que pôs em discussão desde os supostos doutrinais nos que se tinha afirmado desde começos da década do 60 até sua estrutura orgânico-funcional e seu espírito de corpo. O fracasso político e econômico do PRN e a derrota bélica do Atlântico Sul faziam sentir seus efeitos sobre os fardados.
Depois da derrota de Malvinas, o atraso da Junta Militar por designar o sucessor de Galtieri evidenciou o grau de fragmentação no que se encontrava o poder militar. No seio do Exército existia um profundo desacordo sobre a continuidade do regime, embora dentre as alternativas que se baralhavam não se achasse a de um governante civil e sim a de esticar a ditadura por um período de cinco anos a mais. Ao passo que a Marinha recusava a candidatura de um General para se pôr à frente do país e a Força Aérea não aceitava ninguém mais que seu próprio candidato, o Brigadier Basilio Lami Dozo, ou, caso contrário, inclinava-se por um dirigente civil, posição que depois apoiaria a Marinha. Isto punha de manifesto a ausência de coincidências mínimas entre os fardados para dirigir controladamente a então inevitável transição para um regime democrático. As Forças Armadas, divididas e enfrentadas, não estavam em condições de defrontar uma saída que fosse conduzida desde as esferas governamentais do regime e que estivesse regulada e determinada por uma série de parâmetros impostos por elas ao resto da sociedade argentina.
Esta situação favorecia à dirigência civil dado que lhe brindava uma considerável margem de manobra par encarar uma transição sem condicionamentos militares. No entanto, o espectro de organizações partidárias e sociais se achava profundamente dividido. Não existiam coincidências com relação à modalidade de relacionamento com o poder militar, fator que tinha sido uma constante desde o momento mesmo da conformação da Multipartidária. Existia um marcado conflito entre quem preferia a negociação desde uma posição de confronto e quem preferia pactuar desde uma subordinação ao polo militar. As conduções da UCR e do PJ se inclinavam por esta última opção, tal como o sintetizou claramente o peronista Bittel em referência à promessa do General Bignone de encarar uma transição:
[El Gral. Bignone] puso especial énfasis en que este es un gobierno de transición que va a desembocar en la democratización del país [...]. Hacer críticas duras y destruir en este momento, me parece un apresuramiento.152
Por sua vez, no último documento elaborado pela Multipartidária em maio também primou esta alternativa. Nele se propôs que a situação política não podia retroceder ao 2 de abril e se indicou com medida que o crítico quadro institucional não devia ir em favor de "toda cisão que tenda a dividir civis e militares". Também, se rejeitou toda tentativa de continuar uma saída institucional que implicasse "finalidades continuistas e ficantistas", mas não se disse nada acerca das seqüelas do terrorismo de Estado, apesar de que desde o governo já se tinha anunciado a futura sanção de uma lei de auto-amnistia.
Dava a impressão que o impacto centrífugo que tinha tido a experiência bélica sobre os homens de armas tinha envolvido também a classe política civil. Evidentemente, a posição de subordinação que a maioria da dirigência partidária tivera perante o poder militar durante a guerra austral, acabou gerando profundos condicionantes que obstaram a construção de um mínimo consenso para encarar a saída do regime ou para posicionar-se perante as seqüelas da repressão ilegal e da violação dos direitos humanos.
Naquela época a exigência dos organismos de direitos humanos a favor do "juízo e punição" aos militares responsáveis dos crimes cometidos durante a "luta contra a subversão" começou a contar com um forte respaldo social. Contudo, os partidos políticos mantiveram uma posição ambígua a respeito e, em seu conjunto, não acompanharam decididamente aquele reclamo. Já em 1983, antes de morrer, Balbín afirmaria que não se devia revisar o passado.
[...] los hechos ocurridos con la subversión y sus consecuencias son sacudidos, usados de distinta manera, y entonces surgen las ideas de las revanchas, de las investigaciones, en un tiempo en que no hemos alcanzado todavía la seguridad. Entonces, alguna gente ve en la institucionalización un peligro. Y nosotros tenemos que hacer una prédica total de convivencia para demostrar que no hay nada más para atrás. Que vamos a mirar para adelante.153
Assim, no contexto de um amplo apoio civil ao reclamo de democratização e de uma acentuada debilidade militar, Galtieri foi substituído pelo General Reynaldo Bignone, ao mesmo tempo que a Força Aérea e a Marinha desistiram da direção política do PRN e se auto-excluiram da Junta Militar, a que só se volveria a conformar em setembro de 1982. Assim como iniciou sua gestão, Bignone se comprometeu a reinstitucionalizar a democracia, como último prazo, para março de 1984. No entanto, o 3 de julho, o Comandante em Chefe do exército, o General Cristino Nicolaides, aclarou que a normalização institucional do país devia-se realizar em forma "ordenada, concertada e dividida". Com esta posição, ficava claro que, para o Exército, o retrocesso militar e a promessa de saída democrática estava condicionada por dois parâmetros, a saber, a necessidade de produzir uma reinstitucionalização gradual e segura para a ótica militar e a de promover, desde as esferas do poder militar, um acordo básico com os partidos políticos sobre a reinserção militar no ordenamento democrático resultante, objetivado centralmente a impedir toda tentativa posterior de revisão judicial do passado autoritário.
Nesta mesma linha, em setembro, a Junta Militar já reconstituída propôs à oposição partidária um acordo sobre 15 pontos básicos com a intenção de regular a saída institucional, entre os que se destacavam a vigência do estado de sítio, o estabelecimento dos mecanismos e da seqüência das eleições e da entrega do governo, a luta contra o terrorismo, os desaparecidos, a dívida externa e a presença institucional das Forças Armadas no novo ordenamento democrático. Por sua parte, a Multipartidária, recusou a proposta militar e descartou o desejo oficial de "graduar " a saída institucional, mas, ao mesmo tempo, mostrou-se disposta a continuar dialogando com a debilitada administração militar e, sobretudo, aceitou não efetuar demandas concretas sobre o estabelecimento de responsabilidades com relação às violações aos direitos humanos cometidas durante a denominada luta contra a subversão, questão que preocupava muito aos fardados.154 Desta maneira, a classe política civil descartou de antemão a possibilidade de articular uma alternativa de poder perante o regime.
Todo este clima deu contexto a um processo transicional assinalado, de um lado, pela fraqueza política do governo militar e a fragmentação institucional das Forças Armadas e, de outro lado, pela fraqueza da dirigência civil, tal como o escreveu apropriadamente Ernesto López:
No hubo finalmente concertación entre civiles y militares, o sea que no hubo transición pactada (como sí sucedió poco tiempo después en otros países de la región), pero tampoco una entera derrota política de los militares y una plena ocupación de los espacios y recursos de poder por parte de los civiles, que los ubicara en una sólida posición de predominio y control respecto de los militares.155
Efetivamente, este processo não configurou uma transição pactuada. Embora em seus começos até a guerra austral, todo parecesse objetivado nessa direção. Tratou-se de uma transição por colapso, isto é, uma transição determinada pela ruptura do regime militar, cujo desencadeante definitivo esteve dado pela derrota de Malvinas. Vale dizer, não consistiu em uma liberalização provocada ou forçada pela oposição política frente ao poder militar nem pela mobilização da sociedade, mas que deveio como conseqüência da implosão da ditadura.
Desde o mesmo começo da transição, iniciada com a convocatória ao diálogo político lançada pelo General Videla em março de 1980, até a guerra de Malvinas, todo o espectro político e social opositor se situou no terreno institucional e discursivo que o poder militar foi definindo e nenhum dos partidos políticos nem dos atores sociais -salvo certos setores sindicais e os organismos de direitos humanos- conseguiu formular e articular uma posição diferenciada e alternativa à do governo militar, nem sequer quando este mostrou-se em um estado de virtual fragmentação política. Diante a descomposição do regime, a classe política, vacilante e cindida na hora de pôr-se frente aos fardados, não demonstrou capacidade para superar as limitações que lhe impediam conduzir o processo político de então. Portanto, não houve uma transição pactuada ou negociada nem conduzida pelo polo militar, mas também não houve uma plena ocupação dos espaços de poder, relegados pelo poder castrense, de parte da dirigência civil.
Pois bem ao finalizar o PRN, pôde-se observar que as transformações registradas na sociedade argentina foram numerosas e muito profundas. Desde então, se configurou um novo poder econômico do que surgiram novas frações políticas e sociais dominantes, cujo contrapeso supôs a desarticulação social e perda de gravitação política dos setores que compunham o campo popular, em especial, os setores assalariados. Este conjunto de mudanças estruturais sentaram os fundamentos de um novo cenário político. O protagonismo militar na autoria de semelhantes mudanças foi decisivo. Mas também foram importantes as mudanças e transformações que tiveram lugar no interior das próprias Forças Armadas, abrindo-se nelas uma etapa marcada por uma profunda crise profissional que cruzou de cabo a rabo suas instituições e que afetou todos seus degraus. As conseqüências deste cenário se estenderam dramaticamente ao longo de todo o período transicional e depois da instauração democrática de 1983.
No 30 de outubro de 1983, o dirigente radical Raúl Alfonsín ganhou as eleições presidenciais por uma ampla margem sobre o candidato do PJ, Ítalo Luder. A UCR obteve 7.725.173 votos e o PJ só 5.994.406 votos.156 Era a primeira vez, desde a década do 50, que um candidato não pertencente ao peronismo triunfava em eleições gerais sem proscrições nem condicionamentos tutelares por parte das Forças Armadas. Deste modo, a etapa que se iniciou com a chegada à Casa Rosada de Alfonsín supôs a institucionalização de um novo consenso político montado sobre a inexistência de condições de exclusão e/ou proscrições de algum setor político ou social, a ausência de tutela militar e a reivindicação coletiva do sistema democrático como ordem política legítima de parte de todo o espectro político e social nacional.
84. Com o termo peronismo o justicialismo faremos referência ao setor político liderado por Juan Domingo Perón e reunido no Partido Justicialista (PJ).
85. Um grupo de pressão é um grupo de interesse ou associação de tipo político-social que articula e desenrola demandas e/ou proposições perante os poderes públicos em forma extra-institucional, isto é "ultrapassando" os limites dos procedimentos, mecanismos e normas institucionais que medeiam formalmente a relação entre o Estado e a sociedade, já seja porque considera insuficiente ou ineficaz as formas institucionais de mediação ou pela eventualrecusa das autoridades governamentais em satisfazer seus interesses e sem pretender a alteração do regime político vigente.
86. Veja-se LÓPEZ, Ernesto, Relaciones cívico-militares y orden democrático: Los límites de los actores, Informe de resultados para la Fundación Ford, Buenos Aires, 1991; LÓPEZ, Ernesto, Ni la ceniza..., op. cit Estas são as conclusões às que chega Marcelo Cavvarozzi em: CAVAROZZI, Marcelo, "Los ciclos políticos en la Argentina desde 1955", em O'DONNELL, Guillermo, SCHMITTER, Philippe, e WHITEHEAD, Laurence (comps.), Transiciones desde un gobierno autoritario, Paidós, Buenos Aires, tomo 2, 1988.
87. Para uma boa análise da redefinição funcional e doutrinária das Forças Armadas, no compasso da articulação das condições políticas assinaladas, veja-se: LÓPEZ, Ernesto, Seguridad nacional y sedición militar, Legasa, Buenos Aires, 1987.
88. O'DONNELL, Guillermo, Modernización y autoritarismo, Paidós, Buenos Aires, 1972, cap.4.
89. GARCÍA DELGADO, Daniel, Raíces cuestionadas. La tradición popular y la democracia/2, CEAL, Buenos Aires, 1989.
90. O qualificativo semidemocrático para fazer referência às experiências governamentais de Arturo Frondizi (1958-1962) e de Arturo Illia (1963-1966) é utilizado por Marcelo Cavarozzi nos trabalhos já citados para destacar que estas gestões formalmente democráticas, surgiram mediante , e pela, proscrição do peronismo.
91. O'DONNEL, Guillermo, Modernización ... , op. cit.
92. Desde um tempo atrás, a Unión Cívica Radical Intransigente (UCRI) , o partido de Frondizi, tinha começado a se aproximar ao peronismo até que em janeiro de 1958 levou-se a cabo o denominado Pacto de Caracas pelo qual Perón se comprometeu a ajudar eleitoralmente àquele ao passo que se produziria a derrogação de todas as medidas de exceção vigentes que proscreviam ao peronismo e a legalização das organizações sindicais.
93. Veja-se: POTASH, Robert, El Ejército y la política en la Argentina, 1962-1973, Editorial Sudamericana, Buenos Aires, 1994, Parte I, cap. 1.
94. Corpo Doutrinal que constituía uma concepção de guerra composta por dois pilares: a) o alinhamento internacional e a subordinação estratégico-militar aos Estados Unidos, no quadro da contenda mundial sustida contra o comunismo soviético; e b) a institucionalização das tarefas de segurança, vigilância, e policiamento interior como função primordial das Forças Armadas da região para combater à "subversão marxista" que se expressava em movimentos guerrilheiros e formas de terrorismo político no interior dos Estados Latino-americanos. Para uma abordagem pormenorizada da Doutrina da Segurança Nacional, de sua inserção nas Forças Armadas argentinas e das conseqüências de isso no seio destas instituições e no sistema político local, veja-se: LÓPEZ, Ernesto, Seguridad Nacional..., op. cit.; GARCÍA, Alicia, La Doctrina de la Seguridad Nacional, CEAL, Buenos Aires, 1991, tomo 1 e 2.
95. Este documento está citado em forma completa em: FRAGA, Rosendo, El Ejército y Frondizi (1958/1962), Emecé editores, Buenos Aires, 1992, pp. 228-230.
96. Ibid.
97. Radiograma citado em: POTASH, Robert, El Ejército..., op. cit., pp. 28, 29.
98. Documento citado em: POTASH, Robert, El Ejército..., op. cit., pp. 39,40.
99. Veja-se CAVAROZZI, Marcelo, Autoritarismo..., op. cit.; POTASH, Robert, El Ejército..., op. cit.; ROUQUIÉ, Alain, "Hegemonía militar, Estado y dominación social", em ROUQUIÉ, Alain, Poder militar y Sociedad Política en la Argentina, Hyspamérica, Buenos Aires, 1986, tomo 2.
100. POTASH, Robert, El Ejército..., op. cit., cap. 1.
101. Comunicado citado em: VERBITSKY, Horacio, Medio siglo de proclamas militares, Editora/12, Buenos Aires, pp. 92-94. Os autores deste comunicado foram o Coronel Julio Aguirre e o politólogo e advogado Mariano Grondona.
102. POTASH, Robert, El Ejército..., op. cit., cap. 1.
103. Veja-se ROUQUIÉ, Alain, Poder militar..., op. cit., pp. 235-251. Para uma análise das projecções golpistas da coalizão cívico-militar que protagonizou a derrocada de Illia, veja-se: KVATERNIK, Eugenio, El péndulo cívico-militar. La caída de Illia, Editorial Tesis/Instituto Torcuato Di Tella, Buenos Aires, 1990.
104. Discurso citado em; CAVAROZZI, Marcelo, Autoritarismo e democracia (1955-1996). La transición del estado al mercado en la Argentina, Ariel, Buenos Aires, 1997, pp. 214 -215.
105. Veja-se: COLLIER, David (comp.), Los nuevos autoritarismos..., op. cit.; GARRETÓN, Manuel, "Proyecto, trayectoria...", op. cit.
106. O'DONNELL, Guillermo: 1966-1973. El Estado burocrático-autoritario, Editorial de Belgrano, Buenos Aires, 1982, cap.1.
107. O Cordobazo foi um levantamento popular encabeçado por operários e estudantes e, junto a suas organizações políticas y sociais, "tomaram" a cidade de Córdoba durante os dias 29 e 30 de maio de 1969, fato que foi conjurado através de uma violenta repressão levada a cabo por tropas do Exército. Desde então, outros acontecimentos similares se foram produzindo ao longo das principais cidades do país. Veja-se: BRA, Gerardo, El gobierno de Onganía, CEAL, Buenos Aires, 1985.
108. Comunicado citado em: VERBITSKY, Horacio, Medio siglo..., op. cit., pp. 115-116.
109. POTASH, Robert, El ejército y la política en la Argentina, 1962-1973, Editorial Sudamericana, Buenos Aires, parte II, 1994, cap. 8.
110. Documento citado em: FRAGA, Rosando, Ejército: del escarnio al poder (1973-76), Editorial Planeta, Buenos Aires, 1988, pp.49-50.
111. Durante os primeiros anos da década dos '70, os principais grupos guerrilheiros eram (i) o Ejército Revolucionario del Pueblo (ERP), de filhação marxista-leninista; (ii) as Fuerzas Armadas de Liberación (FAL), de filhação maoista; (iii) as Fuerzas Armadas Revolucionarias (FAR) , de filhação castristas , mas próximas ao peronismo de esquerda; (iv) as Fuerzas Armadas Peronistas (FAP), de filhação peronista e os Montoneros, que era a guerrilha peronista.
112. Veja-se: OLLIER, María Matilde, El fenómeno insurreccional y la cultura política (1969-1973), CEAL, Buenos Aires, 1986.
113. Veja-se: FRAGA, Rosendo, Ejército... , op. cit.
114. Norma mencionada em: GARCÍA, Alicia, La Doctrina de la ... , op. cit., tomo 2, p.146.
115. Publicado no Boletín Oficial do 4 de novembro de 1975.
116. Publicados no Boletín Oficial do 4 de novembro de 1975.
117. Para uma boa análise, veja-se: WALDMANN, Peter, "Anomia y violencia", em ROUQUIÉ, Alain (comp.), Argentina..., op. cit., pp. 211-212; GARCÍA, Prudencio, El drama de la autonomía militar, Alianza Editorial, Madrid, 1995, apêndice IV.
118. Ata mencionada em: VERBITSKY, Horacio, Medio Siglo..., op. cit., pp. 142-144.
119. Proclama citada em: VERBITSKY, Horacio, Medio siglo..., op. cit., pp. 147-149.
120. Jornal Clarín, Buenos Aires, 31 de março de 1976.
121. Jornal Clarín, Buenos Aires, 13 de dezembro de 1977.
122. CANITROT, Adolfo, Teoría y práctica del liberalismo. Política antinflacionaria y apertura económica en la Argentina, 1976-1981, Estudios CEDES, Buenos Aires, vol. 3, nro. 10, 1980, p. 6.
123. SCHVARZER, Jorge, La política económica de Martínez de Hoz, Hyspamérica, Buenos Aires, 1986.
124. Para a compreensão do processo de transformação da economia e a sociedade argentina a partir de 1976, veja-se, entre outros: CANITROT, Adolfo, Teoría y práctica..., OP. Cit.; CANITROT, Adolfo, La disciplina como objetivo de politica económica: un ensayo sobre el programa económico del gobierno argentino desde 1976, Estudios CEDES, Buenos Aires, vol 2, nro.6, 1981; SCHWARZER, Jorge, La política económica... , op. cit.; AZPIAZU, Daniel, BASUALDO, Eduardo y KHAVISSE, Miguel, El nuevo poder económico de la Argentina de los años 80, Editorial Legasa, Buenos Aires, 1987; AZPIAZU, Daniel y BASUALDO, Eduardo, Cara y contracara de los grupos económicos, editorial Cántaro, Buenos Aires, 1989.
125. Ibid.
126. COMISIÓN NACIONAL SOBRE LA DESPARICIÓN DE PERSONAS, Nunca Mais, EUDEBA, Buenos Aires, 1985. Veja-se também: FERNÁNDEZ, Arturo, Las prácticas sociales del sindicalismo (1976-1983), CEAL, Buenos Aires, 1985.
127. COMISIÓN NACIONAL SOBRE LA DESPARICIÓN DE PERSONAS, Nunca..., op. cit.
128. ASAMBLEA PERMANENTE POR LOS DERECHOS HUMANOS, Las cifras de la Guerra Sucia, APDH, Buenos Aires, 1988.
129. GARCÍA, Prudencio, El drama de la..., op. cit., cap. III.
130. Documento citado em: Revista El Diario del Juicio, Buenos Aires, 3 de dezembro de 1985.
131. COMISIÓN NACIONAL SOBRE LA DESAPARICIÓN DE PERSONAS, Nunca..., op. cit.
132. WALDMAN, Peter y GARZÓN VALDES, J. (comps.), El poder militar en la Argentina, 1976-1981, Editorial Galerna, Buenos Aires, 1983; DUHALDE, Eduardo Luis, El Estado terrorista, Javier Vergara, Buenos Aires, 1984; OSZLAK, Oscar, "Privatización, autoritaria y recreación de la escena pública", en OSZLAK, Oscar, Proceso, crisis y transición democrática, CEAL, Buenos Aires, tomo I, 1984.
133. BIGNONE, Reynaldo, El último de facto. La liquidación del Proceso. Memoria y testimonio, Planeta, Buenos Aires, 1992, pp.83, 84.
134. CASTIGLIONE, Marta, La militarización do Estado na Argentina (1976/1981), CEAL, Buenos Aires, 1992.
135. GARCÍA DELGADO, Daniel y STILETANO, Marcelo, "La participación de los militares en los nuevos autoritarismos: la Argentina del Proceso (1976-1983)", en revista Opciones, Santiago de Chile, maio-agosto de 1988; QUIROGA, Hugo, El tiempo del "Proceso". Conflictos y coincidencias entre políticos y militares, 1976-1983, Fundación Ross, Rosario, 1994, cap. II.
136. GROISMAN, Enrique, Poder y derecho en el Proceso de Reorganización Nacional, CISEA, Buenos Aires, 1983.
137. Veja-se: CAVAROZZI, Marcelo, Autoritarismo..., op. cit.; DE RIZ, Liliana, "Argentina: ni democracia estable ni Régimen militar", en OSLAK, Oscar (comp.), Proceso, crisis, ..., op. cit., tomo 2; GÓMEZ, José y VIOLA, Eduardo, "Transición desde el autoritarismo y potencialidades de invención democrática en la Argentina de 1983", en OSLAK, Oscar (comp.), Proceso, crisis..., op. cit., tomo 2.
138. RICCI, María Susana y FITCH, Samuel, "Los últimos regímenes militares en Argentina, 1966-1973 y 1976-1983", en GOODMAN, Louis, MENDELSON, Johana e RIAL, Juan (comps.), Los militares y la democracia..., op. cit.
139. Veja-se: Ibid.; LÓPEZ, Ernesto, Seguridad Nacional..., op. cit.; FONTANA, Andrés, "Forças Armadas e ideologia neoconservadora: o «encolhimento» do Estado na Argentina (1976-1981)", em Revista Dados, Rio de Janeiro, nro. 3, 1984.
140. CAVAROZZI, Marcelo, Autoritarismo..., op. cit., p. 60.
141. BIGNONE, Reynaldo, El último ... , op. cit., p. 84. O Gral. Bignone desempenhava-se como Secretário Geral do Exército, o que o convertia no principal operador político da arma.
142. Jornal Clarín, Buenos Aires, 20 de dezembro de 1979.
143. Citado em: YANUZZI, María de los Ángeles, Política y dictadura. Los partidos políticos y el "Proceso de Reorganización Nacional", 1976-1983, Fundación Ross, Rosario, 1996, p. 262.
144. BIGNONE, Reynaldo, El último..., op. cit., p. 87.
145. Veja-se: YANUZZI, María de los Ángeles, Política y dictadura..., op. cit.; QUIROGA, Hugo, El tiempo del "Proceso...", op. cit.
146. Jornal Clarín, Buenos Aires, 28 de agosto de 1981.
147. YANUZZI, María de los Ángeles, Política y dictadura..., op. cit., p. 461.
148. Ibid., p. 480.
149. CARDOSO, Oscar; KIRSCHBAUM, Ricardo e VAN DER KOY, Eduardo, Malvinas. La trama secreta, Planeta, Buenos Aires, 1992.
150. Jornal Clarín, Buenos Aires, 26 de maio de 1982.
151. Jornal Clarín, Buenos Aires, 28 de maio de 1982.
152. Jornal Clarín, Buenos Aires, 4 de julho de 1982.
153. LÓPEZ SAAVEDRA, Emiliana, Testigos del "Proceso Militar"/1, CEAL, Buenos Aires, 1984, p. 106.
154. Veja-se: CAVIGLIA, Franco, Los derechos humanos en las relaciones cívico-militares en el tramo final de la transición democrática, mimeo, Buenos Aires, 1992.
155. LÓPES, Ernesto, Ni la ceniza..., op. cit., pp. 47, 48.
156. CATTERBERG, Edgardo, "Las elecciones del 30 de octubre de 1983. El surgimiento de una nueva convergencia electoral", em Desarrollo Económico. Revista de Ciencias Sociales, Buenos Aires, nro. 98, julho-setembro de 1985.