Título: Alfonsín, Menem e as relações cívico-militares. A construção do controle sobre as Forças Armadas na Argentina democrática (1983-1995) - Capítulo primeiro - Relações cívico-militares e controle civil: contexto teórico e conceptual
CAPÍTULO PRIMEIRO
RELAÇÕES CÍVICO-MILITARES E CONTROLE CIVIL: CONTEXTO TEÓRICO E CONCEPTUAL
1.1) Democratização e relações cívico-militares.
Em outro trabalho afirmei que "a democracia se constitui como tal apoiada na aplicação concreta do princípio da soberania popular e do exercício autônomo da cidadania, o que indica que seus atributos constitutivos supõem com igual peso e importância a vigência e regularização institucional de eleições populares e livres fundadas no sufrágio universal, como meio específico para a designação das autoridades governamentais; e a prática iterada da cidadania com relação aos direitos e liberdades civis, políticas e sociais modernos, e assentada na participação político-social autônoma dos cidadãos no processo de governo e nos assuntos coletivos"2. A saber, um regime político democrático é aquele regime institucional conformado pelo conjunto de regras de procedimento que regulam, e práticas sócio-políticas que reproduzem, os atributos constitutivos mencionados acima, particularmente aqueles referidos a (i) a quantidade e o tipo de atores que podem ser eleitos como governantes, (ii) o método de eleição desses governantes, (iii) os mecanismos e regras de formulação e implementação de decisões públicas, (iv) o caráter formal ou informal, implícito ou explícito do conjunto de regras de procedimentos e (v) o tipo e nível de aceitação dessas regras de parte dos atores relevantes.3
Todo processo político-social de construção e institucionalização de um regime político-democrático desenvolvido a partir da saída de um regime político-autoritário4-saída gerada pela imposição de certos atores civis e/ou militares, pelo acordo pactuado entre os atores relevantes ou pelo colapso político do mencionado regime-, supõe duas etapas transicionais analiticamente distinguíveis, a saber. (i) a transição iniciada com o começo da abertura do regime autoritário e que se estende até a instauração do primeiro governo democraticamente eleito,5 e (ii) a transição que vai desde a instalação desse governo até a institucionalização plena e efetiva de um regime político democrático. À primeira etapa a denominarei como transição propriamente dita e à segunda a chamarei de democratização.
Detalhando, em todo processo de democratização, a análise das relações cívico-militares e, em seu contexto, o estudo da questão do controle civil sobre as Forças Armadas constitui uma temática central. No entanto, a particularidade de nosso caso exige que a conceituação dos termos "relações cívico-militares" e "controle civil sobre as Forças Armadas" esteja especificamente referenciada no processo histórico da democratização que constitui a "base empírica" de minha análise. Simultaneamente, tal labor não poderia prescindir da explicação dos pressupostos teóricos acerca da sociedade e a política sobre os que se assentará aquela conceituação e a partir dos quais, além disso, se estabelecerão os diferentes níveis e dimensões de investigação e delineará a metodologia a seguir. Vamos a isso.
1.2) Interações sociais e políticas: atores e condições de situação nas relações cívico-militares.
As relações cívico-militares configuram interações sociais, ou, mais precisamente, um tipo específico de interação social como são as interações políticas, cujas particularidades só podem ser analiticamente abordadas caso se compreenda quais são suas características e propriedades, como se estruturam e quem as protagonizam. Aliás, isso requer de um esboço teórico acerca da sociedade e do sujeito, assim como, nesse contexto, acerca do processo político, levando em conta que este constitui o âmbito específico no qual se situam e articulam as relações cívico-militares.
Toda interação social engloba uma conduta plural e reciprocamente referida que é protagonizada por diversas unidades sociais -indivíduos, grupos, organizações, instituições- e que implica a estruturação de um conjunto de vínculos mutuamente referenciados e interdependentes. Detalhando, a análise das interações sociais e políticas deve centrar se, sobretudo, na abordagem do proceder social e político do homem, para que, em seu interior, possa interpretar-se como essas interações se articulam no âmbito da vida política e social. Ambos aspectos requerem de uma elaboração teórica de maior abrangência que preste conta tanto da estruturação das interações sócio-políticas quanto do sujeito que as constitui através de seus comportamentos e atividades.
É mediante o obrar sócio-político do homem que se constitui a sociedade e, em seu contexto, o sistema político, na medida em que estas instâncias são permanentemente produzidas e reproduzidas pelas atividades e práticas dos homens em suas vidas cotidianas; isto, em conseqüência, indica que a ordem social e política "existe somente como produto da atividade humana".6
Toda interação engloba e se desenvolve a partir de um conjunto de práticas levadas a cabo por determinados atores sociais7 durante sua intervenção no processo social e político. Estas práticas sociais configuram um conjunto de procedimentos, métodos e técnicas mediante as quais os homens operam na vida social e política desenvolvendo sua capacidade potencial de mudança e/ou continuação do curso e do resultado das atividades e processos em que participam.
Assim sendo, as práticas sociais e políticas têm dois traços característicos centrais: a "habitualidade" e a cognoscibilidade/reflexividade. Em primeiro lugar, trata se de práticas sujeitas a o que Berger e Luckmann denominam "habituação", isto é, práticas que implicam e supõem um conjunto de atividades e atos "que podem tornar a executar-se no futuro da mesma maneira e com idêntica economia de esforços".8 Este carárter de habitualidade que caracteriza as atividades sociais que desenvolvem os atores diariamente, supõe a reprodução repetida de modalidades, estilos e tipos de condutas e de comportamentos que lhes resultam "familiares" e que formam parte de suas "rotinas" cotidianas.
Segundo Anthony Giddens, este processo de rotinização alcança a maioria das atividades humanas e configura a condição básica para que a sociedade seja "reproduzida" por seus membros.9 Contudo, não necessariamente toda reprodução supõe -nem deve ser assimilada a- formas de continuidade ou de repetição, mas também pode implicar o desenrolamento de comportamentos e ações inovadoras cuja intenção e/ou resultados podem conotar a "produção" de novas modalidades, estilos e tipos de conduta. Com palavras desde autor, isto significa "ser capaz de «agir de outro modo (...), ser capaz de intervir no mundo, ou de abster-se dessa intervenção, com a conseqüência de influir sobre um processo ou um estado de coisas específico".10 Portanto, não há possibilidade de reprodução social e política sem a aptidão a capacidade do homem para "produzir uma diferença" sobre uma determinada situação político-social ou no desenvolvimento de um espectro de processos preexistentes, questão sobre a que oportunamente voltarei.
Dando continuidade, as práticas sociais e políticas só podem ser repetidamente rotinizadas enquanto os atores detenham o que Alfred Schutz tem chamado um "acervo geral de conhecimentos", que não é mais que um espectro de saberes heterogêneos e difusos acerca do mundo social e natural, e que configura um cúmulo de experiências referidas "unicamente à regularidade de fatos do mundo externo" a partir do qual esses atores levam a cabo suas práticas cotidianas habitualizadas.11 Esta cognoscibilidade/reflexividade pressuposta na ação sócio-política dos atores configura, pois, o outro traço básico de toda prática social.
O desenvolvimento do obrar humano é possível enquanto os homens são sujeitos entendidos, visto que sustentam certa capacidade cognoscitiva e reflexiva para conhecer e abordar determinadas particularidades das atividades que empreendem e das condições de situação que circundam o cenário histórico no qual se desenvolvem suas vidas. Isto quer dizer, segundo afirma Giddens, que tanto as ações e atividades que desenrolam correntemente ao atores quanto os aspectos sociais e naturais dos contextos nos que se situam, estão sempre e rotineiramente, em maior ou menor medida, sob seu próprio controle reflexivo.
Porém, este autor também indica -em sintonia com os aportes de Schutz- que essa reflexividade engloba um espectro de potencialidades cognoscitivas que abarcam desde um conjunto de saberes acessíveis a sua consciência até um cúmulo de "saberes tácitos adquiridos em forma prática". Isto é, esse leque de cognoscibilidade não só não se esgota naqueles saberes que podem ser concebidos e expressados discursivamente pelo agente -tal como poderiam sugerir algumas perspectivas racionalistas muito na moda na atualidade-, mas também estão constituídos principalmente por um conjunto de conhecimentos que são apenas de caráter prático, isto é, adquiridos praticamente nos encontros e interações sociais cotidianas, mas impossibilitados de poder ser expressados discursivamente.12
Vale dizer que, enquanto a denominada "consciência discursiva" contem todos aqueles saberes acerca das condições sociais da ação que são capazes de "ser ditos ou expressados verbalmente" (isto é, expressados discursivamente) pelos atores -o que supõe saberes acessíveis à consciência dos mesmos-, a "consciência prática" abarca "tudo aquilo que os atores sabem/acreditam acerca da vida social, particularmente as condições sociais de suas ações, mas que não pode ser expressado discursivamente e que não é diretamente acessível a sua consciência". Mesmo que os atores sociais saibam sempre sob alguma forma de descrição o que estão fazendo no nível da consciência discursiva, a consciência prática configura o baseamento central sobre o qual se assenta sua capacidade de participar na diversidade de contextos da vida social e é o atributo essencial que converte os indivíduos em membros competentes da sociedade.13 Desta maneira, a cognoscibilidade/reflexividade humana não é sinônimo de consciência, mas deve ser entendida como uma forma de monitorização cognitiva-reflexiva do fluir contínuo da vida social não limitado a modalidades de tipo racional e que está fundamentalmente baseada na consciência prática.
Além disso, o obrar humano supõe, por um lado, a existência de um conjunto de condições que não são observadas nem registradas reflexivamente pelo ator no percurso de sua vida social e, por outro, a possibilidade de que esse obrar tenha conseqüências não procuradas nem premeditadas pelo ator. Isto indica, em conseqüência, que existe um sem-número de situações e circunstâncias da vida social e política que não são percebidas, conhecidas nem registradas pelos atores no processo de reprodução social e política que protagonizam e que, por tanto a participação dos atores na vida social e política não é protagonizada em condições que estejam inteiramente sob seu controle consciente nem configura o resultado de atos intencionalmente concebidos. Os efeitos e conseqüências da intervenção dos atores nestes âmbitos supõem formas diversas de atividade, independentemente de que tais resultados tenham sido total ou parcialmente pretendidos (isto é, premeditados ou procurados) ou, em outros termos, que esses atores tenham tido plena consciência de suas habilidades e da forma como exercem as destrezas que lhe são inerentes.14
Neste sentido, e diferentemente do que poderia ser afirmado por concepções racionalistas e/ou voluntaristas que interpretam o obrar humano como um ato intencional produzido por sujeitos com capacidade para conhecer integralmente as condições e o resultado particular de suas ações, aqui se propor que a reflexividade social e política do homem se acha delimitada e, simultaneamente, condicionada, de um lado, pelo caráter prático do entendimento e pela dimensão inconsciente da vida mental e, de outro lado, pelas condições sociais inadvertidas e pelas conseqüências não procuradas da ação.
Estas considerações, por sua vez, permitem abordar uma questão central para a compreensão dos processos sociais e, em particular, do processo político. Segundo Giddens, é fundamental observar que na vida social, as "atividades repetitivas, localizadas em um contexto de tempo e de espaço, têm conseqüências regularizadas" geralmente "não procuradas por quem empreendem essas atividades". Os efeitos dessas conseqüências rotineiras e não procuradas ocorrem "em contextos de um espaço-tempo a mais ou a menos longínquos" desses atores, embora depois tais efeitos influam "de maneira direta ou indireta, sobre as posteriores condições de uma ação no contexto original". Isto leva este autor a afirmar que "as conseqüências não procuradas se distribuem regularmente como subprodutos de uma conduta regularizada que como tal recebe sustentação reflexiva de quem participam nela".
Além do mais, a estruturação de um sistema de interações, vale dizer, a articulação de relações sociais e políticas em um campo espaço-temporal determinado, se constitui através das atividades e ações dos atores à medida que estes fazem uso competentemente de um conjunto de meios para levar a cabo essa intervenção. Esses meios são as regras e recursos que servem de suportes instrumentais para a concreção das práticas mediante as quais os mencionados atores intervêm no processo social e político.15
Segundo Giddens, essas regras não configuram prescrições formalizadas, assim como as regras de um jogo ou as normas codificadas, nem eqüivalem a uma rotina ou hábito; também não devem ser confundidas com "regras formalizadas" assim como as normas legais ou as regras burocráticas, que são, na verdade, "interpretações codificadas de regras sociais", mas conformam um conjunto de "técnicas e procedimentos generalizáveis que se aplicam à cena/reprodução de práticas sociais".16
Deste modo, as "regras de procedimentos sociais" se constituem historicamente -isto é, se produzem e reproduzem historicamente- como resultado de um processo de institucionalização, ao que Berger e Luckmann definem como uma "tipificação recíproca de ações habitualizadas por tipos de atores". Além disso -e em sintonia com o sustentado por Giddens-, estes autores afirmam que "as tipificações das ações habitualizadas que constituem as instituições, sempre se compartilham", o que eqüivale dizer que são gerais e generalizáveis., isto é, que configuram tipificações "acessíveis para todos os integrantes de um determinado grupo social" e que abarcam "tanto aos atores individuais quanto às ações individuais".17
Um aspecto fundamental desta questão está dado por o que estes autores denominam objetivação das instituições, processo mediante o qual as regras tipificadas que resultam da institucionalização "se vivenciam como existentes acima e além dos indivíduos a quem acontece encará-las nesse momento". Essas práticas institucionalizadas -ou, essas instituições- são vividas, observadas e experimentadas pelos atores que as atualizam com suas ações "como se possuíssem uma realidade própria, que se apresenta ao indivíduo como um fato externo e coercivo".18 Ainda que, a bem da verdade, as instituições sociais -e políticas- não sejam mais que o resultado das práticas institucionalizadas protagonizadas pelos atores e, apesar de estes possuir a potencialidade de reformulá-las, mudá-las e até aboli-las, a objetivação dessas práticas faz que as mencionadas instituições "apareçam" perante esses atores como "uma realidade ampla e análoga à realidade do mundo natural", percepção que é reforçada pelo fato de a historicidade das instituições possuir uma dureé mais extensa que a da vida dos homens que a produzem e reproduzem.19 Isto conduz, por sua vez, ao que Giddens chama de reificação da realidade social mediante a qual se articulam "formas de discurso que consideram [às propriedades institucionais] como objetivamente dadas [..]), como se fossem fenômenos naturais", isto é, "estilo de discurso em que as propriedades de sistemas sociais se olham como se possuíssem a mesma fixidez que se atribui às leis da natureza".20 No entanto, trata se de percepções e formas discursivas, já que, assim como o indicam Berger e Luckmann, "o mundo institucional é uma atividade humana objetivada" e tal objetividade não "adquire um status ontológico separado da atividade humana que a produziu".21
De outra parte, as "regras de procedimentos sociais" só podem ser atualizadas recursivamente através da manipulação efetiva por parte do ator de um conjunto de "recursos" que servem como fundamentos de poder para sua projeção plena na vida social e política. Sob o ponto de vista analítico, Giddens distingue duas categorias de recursos: a) os "recursos de autoridade" que aportam a capacidade de poder sobre as pessoas ou atividades dos seres humanos e que englobam (i) a organização de um espaço-tempo social (constituição espaço-temporal de caminhos e regiões), (ii) as formas de produção e reprodução do corpo (organização e relação de seres humanos em associação mútua) e (iii) a organização de oportunidades de vida (constituição de oportunidades de autodesenvolvimento e expressão de si); e b) os "recursos de atribuição" que dão lugar à capacidade de poder sobre os objetos físicos e o ambiente natural, e que abarcam (i) os aspectos materiais do ambiente (matérias-primas, fontes de energia material), (ii) os meios de produção/reprodução material (instrumentos de produção e tecnologia), e (iii) os bens produzidos (artefatos criados).22
Cabe tomar conta de que, diferentemente do que pudesse afirmar qualquer perspectiva materialista da sociedade, nenhum destes dois tipos de recursos tem maior peso ontológico ou prioridade lógica sobre o outro no contexto dos processos sociais e políticos. No plano teórico, ambos são igualmente estruturais, embora historicamente possa variar a importância ou o predomínio de um tipo de recursos sobre o outro com relação às condições existentes em determinado cenário espaço-temporal.
Aliás, para Giddens, as regras e os recursos configuram a estrutura da sociedade e, como tal, têm uma existência virtual. Isto é, enquanto as interações sociais se constituem, atualizam e reproduzem através de, e em, práticas sociais regulares e historicamente situadas no espaço e no tempo, as regras e os recursos que conformam as propriedades estruturais da sociedade situam-se fora do tempo e do espaço. Tais propriedades adquirem corpo, se expressam e se atualizam somente através da efetivação das práticas sociais repetidamente reproduzidas e nas pegadas mnêmicas que orientam as condutas dos agentes sociais e políticos.23 A isto se acrescenta a consideração de que as regras e recursos como "propriedades estruturais dos sistemas sociais são não menos habilitantes que limitadoras", isto é, que podem tanto limitar e constranger as opções e possibilidades de ação dos atores quanto facilitar ou permitir ditas opções e possibilidades.
Afastando-se do que poderia ser afirmado por uma perspectiva estructuralista, este enfoque indica que a) por um lado, as propriedades estruturais da sociedade não são externas aos agentes, mas internas a eles, desde o momento em que as regras e os recursos se expressam através de e em suas condutas e traços mentais; e b) por outro lado, essas propriedades estruturais podem ser simultaneamente tanto constritivas quanto habilitantes das projeções dos atores, devido a que elas podem limitar e/ou facilitar a produção de ações e comportamentos humanos. Sobre esta base, afirmo que, por um lado, os fenômenos sociais e políticos se inserem no âmbito das ações e das práticas sócio-políticas dos atores e, por outro, tanto o constrangimento quanto a habilitação configuram as qualidades que definem toda totalidade sócio-política, o qual, visto em conjunto, está prestando conta de uma concepção, com certeza, singular do termo estrutura.
Eis aqui, pois, um ponto central do percurso teórico que estou desenvolvendo, cuja incidência na temática analisada e, em particular, nas relações que se articulam entre os atores e as condições de situação, constitui uma problemática central para entender integralmente as relações cívico-militares articuladas nos processos de democratização, o que requer de algumas especificações.
Uns dos aspectos mais importantes do obrar humano está dado pelo fato de que tal obrar está sempre historicamente condicionado por quanto os atores produzem e reproduzem a sociedade situados em um campo espaço-temporal cujas condições não são o resultado direto e imediato desse obrar nem são uma conseqüência de sua escolha racional no transcorrer de suas vidas. As imposições sociais, materiais e institucionais de toda sociedade ou dos distintos setores ou sistemas de interação que a compõem, acrescentadas à variedade de atividades que os atores podem realizar com competência, condicionam em algum sentido o espectro de alternativas de atividades e de ações sociais e políticas possíveis de ser desenroladas, abrindo somente um certo conjunto de opções acessíveis ao exercício do obrar em uma determinada circunstância espaço-temporal.
Decir que en todo momento la sociedad preexiste a la vida de cada uno de sus miembros individuales no es más que discernir una fuente de restricción porque esa preexistencia de algún modo limita las posibilidades que ellos tienen abiertas. En similar sentido, destacar que los individuos se sitúan contextualmente en el interior de relaciones sociales de mayor o menor recorrido no es más que determinar una fuente de restricción si se demuestra que ello pone límites a sus capacidades. En cada caso, el constreñimiento proviene de la existencia "objetiva" de propiedades estructurales que el agente individual no puede modificar. [...] su mejor definición es la puesta de límites al espectro de opciones de que dispone un actor, o una pluralidad de actores, en una circunstancia dada o en un tipo de circunstancia.24
Por tanto, o grau de liberdade ou de constrangimento no exercício da atividade social e política dos atores varia consideravelmente segundo as diferentes circunstâncias históricas nas que se desenvolve tal obrar.
La naturaleza de un constreñimiento es históricamente variable, como los es la de las cualidades habilitadoras generadas por las contextualidades de una acción humana. Es variable en relación con las circunstancias materiales e institucionales de una actividad, pero también en relación con las formas de entendimiento que los agentes poseen acerca de esas circunstancias.25
Certamente, a sociedade se constitui através do obrar dos atores que a compõem. Porém, esses atores não são seus criadores diretos e imediatos -nem do sistema político- mas a constituem através de suas práticas e das interações que protagonizam, reproduzindo e transformando pautas de comportamento e de organização social e políticas estruturadas recorrentemente, mas imersos em um contexto histórico que de alguma maneira condiciona esse acionar e essas interações. Esta questão faz referência à dimensão espaço-temporal dos sistemas sociais ou, mais precisamente, à magnitude e a abrangência do distanciamento espaço-temporal como fator condicionante do comportamento humano e do processo social e político. Por quanto as práticas e as interações sociais e políticas se desenvolvem em um determinado contexto espaço-temporal (ocupam um certo espaço e permanecem um certo tempo), quanto maior for o distanciamento espaço-temporal de determinados âmbitos sociais, menores serão as margens de manipulação e as possibilidades de mudança ou transformação das condições e propriedades desses âmbitos por parte dos agentes individuais, embora isto sempre cerceie ou enclausure certas possibilidades de ação enquanto facilita e permite outras. Ao passo que, a potencialidade de controle, manipulação e transformação das condições de situação se ampliam quando se trata de relações sociais desenvolvidas em âmbitos delimitados, isto é, em âmbitos que supõem relações situadas em um espaço-tempo imediato.
Las sociedades humanas, o sistemas sociales, directamente no existirían sin un obrar humano. Pero no ocurre que los actores creen sistemas sociales: ellos los reproducen o los transforman, y recrean lo ya creado en la continuidad de una praxis. Aquí importa el alcance de un distanciamiento espacio-temporal. En general, (aunque no por cierto de manera universal) es verdadero que mientras mayor sea el distanciamiento espacio-temporal de sistemas sociales -mientras más tiempo y espacio abarquen-, más resistentes serán a su manipulación o cambio por parte de un agente individual. Este significado de constreñimiento también va apareado con una habilitación. Un distanciamiento espacio-temporal clausura ciertas posibilidades de experiencia humana al mismo tiempo que abre otras.26
Além do mais, o processo de produção e reprodução geral do sistema social e político localiza-se na dimensão espaço-temporal correspondente ao das instituições sociais e políticas que abarcam e comprometem ao conjunto da coletividade ou, ao menos, a amplos traços espaço-temporais dela. Por sua vez, esta dimensão do tempo é a condição e o resultado das práticas organizadas na continuidade da vida cotidiana ou, mais precisamente, dos âmbitos das interações sociais e políticas protagonizadas em forma direta pelos atores. Isto não significa que as rotinas destes sistemas de interação delimitados constituam em forma imediata os alicerces sobre os quais são estruturadas no tempo-espaço as formas institucionais globais da organização social ou política da coletividade. Contudo, a pesar de que as instituições sociais e políticas e as interações sócio-políticas cotidianas e delimitadas a âmbitos restringidos se situam em diferentes níveis espaço-temporais, cada uma destas instâncias participa na constituição da outra. Eis aqui um ponto central: a dimensão espaço-temporal das instituições é tanto a condição quanto o resultado das práticas organizadas na continuidade da vida diária. Isto, por sua parte, indica que as relações sociais e políticas podem supor relações de co-presença situadas em um mesmo âmbito espaço-temporal imediato ou relações entre atores que estão fisicamente ausentes. As interações em circunstâncias de co-presença originam encontros que configuram um tipo de associação básica e primária no processo de produção e reprodução social e se localizam e constituem na rotina enquadrada no espaço-tempo da vida social e política "do dia-a-dia". Ao passo que, as interações sociais e políticas estruturadas entre aqueles que encontram-se fisicamente ausentes supõem mecanismos diferentes, já que isso está mais exatamente vinculado à estruturação de instituições situadas em um contexto caracterizado por uma enorme expansão do distanciamento espaço-temporal.27
A importância desta questão para a análise da política é relevante, pois o grau de incidência dos atores sobre as condições de situação depende principalmente do distanciamento espaço-temporal dos diferentes âmbitos nos que atua diariamente. Do mesmo modo, o grau de condicionalidade (constritiva e/ou facilitadora) que o contexto de situação exerce sobre os atores depende da distância espaço-temporal na que se localizam.
As interações sociais e políticas se estruturam a partir de atores localizados em posições que supõem um conjunto de condições constritivas e/ou facilitadoras respeito das ações e práticas que podem se concretizar a partir do obrar desse ator. Entretanto, o mencionado obrar, se bem que se encontre condicionado pelos fatores estruturais e pela competência prática e reflexiva dos agentes, nunca está predeterminado ou preestabelecido. Isto é, as relações sociais estruturam-se devido ao caráter "rotinizado" do comportamento humano e à articulação de formas habituais de condutas e comportamentos esperados, mas isso não cerceia a possibilidade de que em determinadas situações os atores redefinam e transformem práticas até então institucionalizadas ou diretamente se abstenham de desenvolver cursos de ação, com certeza, factíveis e, desse modo, produzam um novo relacionamento. O processo social e político constitui, pois, uma realidade substancialmente dinâmica.
Neste sentido, os âmbitos espaço-temporalmente delimitados de interação sócio-política configuram o que Michel Dobry denomina "zonas limitadas de interdependência tática" dos atores, nas que "as antecipações, apreciações, interpretações e, em geral, a atividade tática destes atores se efetua então em função dos objetivos, das regras de jogo, oficiais ou pragmáticas, das categorias de recursos e de seu particular distribuição entre os diversos atores individuais e coletivos -isto é, também, em grande medida, entre as posições a mais ou a menos institucionalizadas que freqüentemente ocupam estes atores- e, sobretudo, em função das referências, índices e instrumentos de avaliação, de previsibilidade e de identificação das situações específicas de cada setor".28 O importante para destacar é que nestes âmbitos de interação, os atores que os compõem abordam reflexivamente a situação e se projetam factualmente sobre ela em função da "lógica" social e política que surge das rotinas históricas desse âmbito -seja um grupo social, partidário ou institucional-, "independentemente do que queiram e do que acreditem", o que configura uma forma de objetivação que certamente também constitui um condicionante importante das projeções individuais.
Então, a concorrência histórica e intervinculação dinâmica de diversos âmbitos de interação social e política portadores de diferentes "extensões espaço-temporais" configuram os sistemas sociais concretos -e, em seu interior, também os sistemas políticos-, enquanto que, tal como afirma o Giddens, "todas as sociedades são sistemas sociais mas todas, ao mesmo tempo, estão constituídas pela interseção de múltiplos sistemas sociais" cujas "bordas espaço-temporais denotam interconexões e diferenciais de poder originados entre distintos tipos societários que incluem sistemas intersocietários".29 No entanto, a pesar desta "heterogeneidade", os aspectos institucionalizados dos sistemas sociais -e políticos- historicamente constituídos, isto é, as propriedades estruturais que englobam o conjunto de regras-recursos que intervêm na conformação institucional dessas totalidades, têm "gravitação" condicionante sobre o conjunto das mesmas, inclusive tratando-se de uma incidência prolongada em uma ampla extensão espaço-temporal.
A importância do discernimento entre os âmbitos locais de interação sócio-política e os aspectos institucionais dos sistemas sociais e políticos, assim como a centralidade da identificação das vinculações mutuamente constitutivas entre ambas instâncias espaço-temporais, resultam analiticamente fundamentais de modo de poder "decifrar" tanto as relações dinâmicas e complexas que se estruturam entre os atores que protagonizam o processo social e político, por um lado, quanto as condições de situação dinamicamente presentes nos cenários históricos onde esses processos se desenvolvem, por outro. Por sua vez, isto também nos permite entender -teórica e historicamente- as destrezas práticas e as formas de entendimento através das quais os atores civis e militares têm tido processando, abordando e coordenando suas projeções na vida política, têm tido se relacionando entre si e se têm vinculado com as condições de situação em cujo nível se situa o processo de democratização e as mudanças produzidas na vida política internacional e doméstica, fatores que têm operado tanto como condições constritivas quanto como condiciones facilitadoras de um sem-número de opções e estratégias políticas. Com isto o que se quer ressaltar é em que condições e sob que particularidades foram-se estruturando as relações cívico-militares que deram contexto e foram moldando a questão do controle civil sobre as Forças Armadas nos processos de democratização.
1.3) A Política e o Estado: âmbito institucional das relações cívico-militares.
Com certeza, as considerações expostas até aqui estão vinculadas às noções de poder e dominação, conceitos centrais para compreender as relações cívico-militares.
As relações de poder configuram uma das dimensões constitutivas das interações sociais. Estas, no momento de sua produção, se constituem simultaneamente como relações de comunicação, como relações morais e como relações de poder. O poder designa um aspecto ou propriedade central da interação social: aquele que engloba o impulso de transformação que sustenta todo ator no transcurso do processo de produção e reprodução social.30
Já se especificou antes que o obrar humano está determinado pelo potencial de mudança e de inovação que sustentam os homens na vida social e política, o que, por sua vez, permite estabelecer uma vinculação lógica entre a noção de ação social e de poder. Neste sentido, o termo poder se refere à capacidade pela que todo ator pode intervir em uma série de acontecimentos e influenciar/mudar seu curso, gerando com isso uma transformação que pode ter por objeto tanto a natureza quanto as mesmas relações sociais. Isto significa, então, "ser capaz de obrar de outro modo", de influenciar sobre um estado de coisas ou sobre processos específicos do mundo material ou social, ou simplesmente de abster se de fazê-lo.31
Entendido assim, o conceito de poder conserva um significado geral e amplo. Enquanto, aos efeitos da análise das relações cívico-militares é necessário concebi-lo em um sentido restringido que faça referência àquela dimensão que denota só a capacidade humana de transformação das relações sociais e políticas, isto é, o poder concebido como "impulso transformador articulado entre atores no contexto da interação social". É, neste último sentido, que o poder se constitui como dominação, isto é, como capacidade para garantir resultados nos que a realização dos mesmos depende da atividade de outros atores ou grupos e, como tal, passa a conformar um fenômeno de índole política.
Então, se toda relação de poder, tal como estabeleceu Weber, denota a possibilidade de que um ator possa impor sua vontade e/ou seus desejos sobre outro ator, sua efetivação supõe a existência de algumas assimetrias sócias estruturadas a partir da existência de diferentes capacidades de poder. Essas assimetrias se articulam ao redor de três condições: a) as formas diferenciais de acesso ao conjunto de recursos de autoridade e de atribuição que possuem os atores; b) a importância e o peso diferencial do tipo de recursos de dominação -de autoridade e de atribuição- existente em um determinado contexto espaço-temporal histórico; e c) o grau também diferencial de capacidade e competência no uso das regras e recursos de dominação, coisa que deriva da magnitude diferencial do controle reflexivo e factício que os atores possuem sobre essas regras e recursos.
Não poucas perspectivas teóricas de caráter objetivistas dão por certo que as relações de poder e de dominação dependem só do acesso e a pose de recursos políticos e econômicos, como se estas condições fossem uma derivação lógica ou historicamente necessária da pertencia a certas classes ou grupos sociais ou da localização dos indivíduos em certos estratos da sociedade. Neste mesmo sentido, também foi habitual afirmar que a capacidade de poder deriva quase exclusivamente da possibilidade de acesso a um conjunto de recursos político-institucionais, o que fez que alguns observadores interpretassem, por exemplo, que o poder das Forças Armadas era uma conseqüência do monopólio do uso do aparelho militar do Estado. Evidentemente, estes enfoques excluem de seu conteúdo o protagonismo dos atores sociais na constituição da sociedade e, particularmente, na produção e reprodução das estruturas de dominação e das organizações políticas. Ao passo que aqui sustento uma perspectiva que, sem esquecer as condições estruturais de produção das relações de poder, tenta recuperar o sujeito como eixo articulador do obrar humano e, em conseqüência, como ator político historicamente situado.
Giddens estabelece algumas considerações sobre o poder que se tornam importantes para nossa abordagem e, em particular, para interpretar as relações cívico-militares: a) em primeiro lugar, o poder entendido genericamente como capacidade transformadora é logicamente anterior à constituição da reflexividade subjetiva do homem -mais precisamente, ao registro reflexivo da conduta-, o que nega a possibilidade de definição do poder em termos de vontade ou como capacidade de lograr resultados intencionalmente procurados ou desejados; b) em segundo lugar, o poder não supõe necessariamente a existência de conflito, já que seu exercício pode se expressar tanto mediante modalidades conflitantes quanto também através de formas de consenso e solidariedade, sem depender isto -vale dizer, o conflito/consenso- do fenômeno do poder em si mesmo, senão da existência e defesa da interesses setoriais por parte dos atores sociais, interesses que bem podem ser articulados e combinados de maneira convergente; c) por último, o poder denota fundamentalmente um conjunto de capacidades que, como foi assinalado, não só estão determinadas pelas possibilidades de acesso aos recursos políticos e econômicos, mas também pelo grau de competência dos sujeitos no exercício do obrar humano e por certas condições históricas e sociais que facilitam e/ou constrangem em diferentes graus as projeções reflexivas e factuais desses agentes.32
Por outra parte, toda ação social supõe, sempre e em todo lugar, o exercício de poder, inclusive em situações ou cenários nos que as condições de constrangimento social sobre os agentes impõem margens muito restringidas de ação. Vale dizer que toda estrutura de dominação não pressupõe a existência de formas de coerção perfiladas como fatores determinantes do comportamento dos atores sociais, pois, em certas circunstâncias históricas esses cenários podem estar atravessados por condições que bem podem brindar oportunidades novidadeiras e positivas para o desenvolvimento de ações e comportamentos orientados a produzir profundas mudanças na situação social e política imperante. Ademais, todo cenário social e político contem, segundo as circunstâncias históricas nas que se articula, modalidades de interação nas que se combinam diversas formas de autonomia e dependência entre seus protagonistas.
Pois bem, a partir destas considerações, entendo a política como o processo social de reprodução da dominação mediante a articulação de práticas e interações repetidas e institucionalizadas, referidas ou referenciadas nas instituições de governo existentes em determinado cenário histórico, vale dizer, interações orientadas a intervir direta ou indiretamente na constituição, organização e funcionamento das instituições governamentais e na promulgação regular de políticas e decisões coletivas. Vamos à analise deste ponto.
Jacques Lagroye afirma que toda interação social se constitui em interação política em tanto seus efeitos supõem, em forma explícita, a modificação e transformação da capacidade de poder e/ou legitimidade de alguns atores ou grupos sociais e políticos nno contexto das relações que mantêm com outras unidades.
[...] toda interacción (de índole económica, cultural, religiosa, etc.) provoca modificaciones en las posiciones sociales ocupadas por los participantes y, por consiguiente, afecta el poder que puedan ejercer, sea porque adquieren mayores recursos o porque acrecientan su legitimidad. Pero a diferencia de otras formas de relación, la interacción política es concebida explícitamente como el medio para designar, reconocer o legitimar a los dirigentes del grupo [...].33
Deste modo, as interações políticas, ademais de explicar o caráter relacional do poder social e, em particular, do poder político, se articulam no quadro de um processo dinâmico e permanente de produção e reprodução dos parâmetros institucionais que dão contexto ao cenário sócio-político no que se situam historicamente.
[...] la interacción política (y los cambios de posición que ésta puede provocar) es el conjunto de las interacciones (de índole económica, religiosa, cultural) que modifica a la vez las propiedades y los recursos de los agentes así como las reglas que rigen sus relaciones: la estructuración no se adquiere de una vez para siempre ni constituye una coacción permanente e intangible; es un proceso continuo de elaboración de reglas, dentro de los límites propios de la organización general de la sociedad y del alcance normativo que ciertos grupos pueden atribuir a las reglas transmitidas.34
Assim, o eixo causal e objetivo em torno do qual se estruturam as interações políticas está dado pela intervenção direta ou indireta nas relações de poder estabelecidas entre atores e/ou grupos sociais com o objetivo de produzir algum tipo de mudança nessa relação e no contexto do sistema de interação no que se situam esses atores, mas, sobretudo, nas instâncias de governo e nas decisões coletivas que surgem delas. No plano das complexas sociedades modernas nas que as estruturas governamentais hajam-se altamente especializadas e diferenciadas, essa intervenção encontra nas instituições de governo seu principal contexto que lhe serve de referência e seu âmbito de desenvolvimento, o que indica que a política constitui essencialmente a atividade e/ou processo pelo qual os atores afetam ou tentam afetar de alguma maneira a abrangência e o conteúdo do aparelho e das atividades governativas.
Sob esta ótica, Max Weber afirmou apropriadamente que a política é a atividade social através da qual se exerce o governo político de uma associação ou se intervém no processo mediante o que se procura exercer, de alguma maneira, uma certa "influência" sobre dito governo, que, modernamente, este autor resume no Estado.
Por política [se entiende] la dirección o la influencia sobre la dirección de una asociación política, es decir, en nuestros tiempos, de un Estado.35
Assim entendida, a política expressa então:
[...] la aspiración (Streben) a participar en el poder o a influir en la distribución del poder entre los distintos Estados o, dentro de un mismo Estado, entre los distintos grupos de hombres que lo componen.36
Deste modo, a atividade política encontra seu principal referente simbólico e seu espaço institucional privilegiado nos Estados modernos e no processo sócio-político que o põe em contexto, âmbito no que se desenvolvem as práticas e interações orientadas a influir de algum modo sobre as instituições e atividades governamentais, e que considerado em seu conjunto, configura o que aqui denomino sistema político de uma sociedade.
Pois bem, o Estado constitui um sistema de interação no que sua existência e a validade de suas ordenações articulam-se dentro de um âmbito territorial delimitado e cuja particularidade está determinada pelo controle monopólico e legítimo dos meios institucionais de administração governamental e do exercício legal da violência -policial e militar- através dos quais procura a estruturação e a conservação de uma certa ordem social e política para o conjunto dessa unidade.37 Enquanto organização social altamente especializada, o Estado toma corpo em seus organismos de governo e de administração mediante os quais projeta-se como instância codificada de direção e regulação legítima sobre o conjunto do sistema político e social. Estas funções de direção e regulação configuram as tarefas estruturais do Estado e se articulam ao redor de dois objetivos centrais, tais como, por um lado, a estruturação de uma certa ordem político-social interna e, por outro, a inserção política externa da associação e/ou a defesa da integridade institucional e territorial dessa comunidade frente ao exterior.
Pois bem, este conjunto de considerações gerais acerca do Estado permitem apreciar que este , enquanto estrutura, isto é, enquanto conjunto de procedimentos sociais e recursos políticos estruturados a partir de um sistema de interação com alto grau de institucionalização, se expressa regularmente nas práticas e interações sociais e políticas desenroladas pelos atores que -em sua condição de governantes, funcionários públicos, organizações ou setores não estatais- o constituem e legitimam como instituição de governo. Neste sentido, é importante distinguir a dupla faceta que possui o Estado. Ao mesmo tempo que o Estado é o resultado dessas práticas e interações regulares, também constitui o meio de produção das mesmas. Vale dizer que o Estado "toma corpo" nessa complexa trama de práticas e interações que o produzem e reproduzem regularmente como sistema de governo e, nesse mesmo ato, configura o meio para a efetivação dessas práticas e interações e de todas aquelas através das quais os atores participam e influem, de alguma maneira, sobre sua organização e conteúdo. Em conseqüência, não é possível conceber o Estado como uma instância fechada e isolada da sociedade e do sistema político, nem independente respeito das interações estruturadas entre os atores e grupos sociais e políticos que direta ou indiretamente intervêm nele. Pelo contrário, ao mesmo tempo que o Estado é condicionado em seu funcionamento e em sua organização pela dinâmica dessas interações, também constitui um fator estrutural condicionante do processo social e político levado a cabo por aqueles atores.
Para Lagroye, essa centralidade reafirma-se "na medida em que as instâncias do governo de uma sociedade parecem capazes de impor a seus membros o respeito pelas regras que regem as relações entre grupos e regem seus direitos e obrigações recíprocas", o que faz que "o controle direto ou indireto" dessas instâncias reforcem sua importância estratégica dentro do processo político.
De alguna manera, el "poder del Estado" deviene de la siguiente dinámica: ante la imposibilidad de imponer directamente sus intereses, los grupos sociales rivales tienden a reconocer la autoridad de las instancias y los aparatos estatales que esperan controlar; éstas, designadas por su capacidad para reivindicar una legitimidad colectiva propia, se benefician con esas delegaciones implícitas de poder; así refuerzan su capacidad de acción, al punto de poder imponer a los grupos reticentes, o incluso a todos, las decisiones que lesionan ciertos intereses.38
Todo isto, em definitiva, afirma e consolida, de frente à sociedade, a crença na legitimidade das instituições estatais de governo e a aparência de que configura "algo dado, inalterável, e dotado de força própria" que se projeta externa e coercivamente sobre os indivíduos e grupos políticos e sociais.
Lo que se considera como parte del "orden político" ya no parece depender de una relación de fuerzas entre grupos y aparatos sociales de dominación sino corresponder a la sola competencia del Estado; de manera que las acciones, concordantes en sus efectos, de gobernantes, aparatos administrativos y organismos diferenciados a cargo de los intereses grupales, extienden (de manera más o menos rápida y regular) el campo de las actividades políticas cuyo control se arroga el Estado.39
É, neste quadro, que o Estado converte-se no principal referente e âmbito de desenvolvimento da atividade política, já que suas ações e iniciativas geram ou têm, de alguma maneira, determinados efeitos sobre a produção e reprodução de formas regularizadas de relações sociais e políticas de poder. Isto é, o Estado está em condições de impor e/ou afetar decisões, normas e procedimentos que, de alguma maneira, têm conseqüências diretas ou indiretas sobre a vida política e social, o que determina que a maioria das interações -e dos conflitos- entre grupos sociais e políticos se orientem a influir ou participar das decisões governamentais do Estado.
Neste quadro o Estado constitui a única instância que detenta o monopólio do "papel social" de ser a organização legítima e legal que garante a "ordem pública", inclusive permitindo lhe, caso seja necessário, fazer uso da força, assim como o indicou Weber. É este contexto de consentimento social e legitimidade política que permite que o Estado leve a cabo a estruturação da ordem político-social interna.
El Estado contribuye así a la definición de las reglas que rigen las relaciones entre grupos sociales. No las "inventa" ni las establece por sí mismo, porque esas reglas resultan de la transformación de las relaciones entre los grupos en un espacio ampliado; pero las dota de la autoridad reconocida al Estado y sus aparatos sobre todas las actividades sociales y constituye el marco inevitable para su realización según los procedimientos propios de la actividad política (en este caso la codificación). De alguna manera, les pone el sello de su propia legitimidad.40
Na verdade, estes efeitos sociais e políticos não são mais que o resultado de um processo de objetivação das estruturas de governo estatal que dá lugar a que a "ordem política" se apresente perante os atores como o resultado competente e legítimo do Estado e não como um produto das interações políticas protagonizadas pelos diferentes grupos e aparelhos sócio-políticos. Esta objetivação, em definitiva, permite o estado se constituir e se desenvolver como estrutura institucional de dominação e de organização política dos sistemas sociais e, mais precisamente, do sistema político; isto, por sua vez, configura um dos eixos fundamentais mediante o que é possível explicar as condições de mudança e evolução do processo social e político e, em seu interior, das relações cívico-militares. Estas relações estruturam-se historicamente -embora não exclusivamente- no âmbito do sistema político e, sobretudo, do Estado e do processo político-social que lhe serve de contexto, do que surge a importância conceptual das considerações precedentes para a redefinição teórica aqui proposta.
1.4) Governo, políticas públicas e a questão do controle civil sobre as Forças Armadas.
Sob o ponto de vista analítico, o controle civil sobre as Forças Armadas constitui uma das modalidades possíveis de relações cívico-militares. Especificamente, configura aquela modalidade típica que supõe, de parte do governo civil, o exercício efetivo da condução institucional sobre as Forças Armadas e, de parte dos fardados, a subordinação efetiva às autoridades governamentais. Vista a experiência histórica dos países que atravessam por processos de democratização iniciados com a queda de regimes militar-autoritários, evidentemente o controle civil sobre as Forças Armadas configura uma questão central, já que nestes processos o que esteve -e está- "em jogo" é justamente a possibilidade de que esse controle possa se concretizar, no quadro de relações cívico-militares nas que tanto o exercício efetivo da condução civil sobre as instituições castrenses quanto a subordinação efetiva dos militares às autoridades governamentais não estiveram nem estão conceptualmente supostas nem historicamente garantidas.
Neste quadro, e aos efeitos de conceituar a noção de controle civil sobre as Forças Armadas, é necessário prestar conta, sob o ponto de vista teórico-conceitual, de como se interpreta o processo governamental em cujo âmbito tal controle se produz e se exerce e, especificamente, das características e atributos do exercício efetivo do governo institucional -que não é mais que uma das condições do mencionado controle civil-.
Pois bem, em seu conjunto, o exercício do governo e da administração estatal configura um processo institucional através do qual os governantes e funcionários41 do Estado -já seja que tenham a seu cargo as tarefas executivas e/ou legislativas- elaboram, formulam, decidem, implementam e controlam um conjunto de iniciativas e políticas públicas através das quais o governo procura a estruturação da ordem político-social interna e a inserção internacional do pais. Com certeza, nem sempre os governos estatais desenvolvem políticas públicas integrais nas que se estabelecem objetivos de longo e curto prazo, prioridades, programas de ação, cronogramas, mecanismos de implementação e modalidades de contralor. Em determinadas oportunidades, formulam, decidem e implementam iniciativas pontuais que englobam medidas delimitadas -regulamentações, ações únicas, assistências limitadas, campanhas comunicacionais-, ou bem podem "decidir" não formular nem implementar nenhum tipo de políticas públicas ou iniciativas pontuais. Vale dizer que, assim como o indicam Meny e Thoenig, perante determinadas problemáticas ou situações e em certos contextos, os governos podem "atuar ou não atuar", o que leva a afirmar que uma ação pública é "todo aquilo que os atores governamentais decidem fazer ou não fazer".42
As iniciativas e políticas públicas manifestam-se como um conjunto de práticas e normas institucionais projetadas e levadas a cabo pelos atores governamentais. Remetendo-nos à analise das políticas públicas -já que as iniciativas pontuais guardam um nível de complexidade analítica menor-, deve se observar que constituem "um programa de ação governamental" com as seguintes características: 1) corresponde a uma mesma esfera de atividades ou setor de aplicação tanto institucional quanto social (economia, segurança, cultura, educação, exterior, defessa, etc.), 2) supõe práticas e normas concatenadas e sistematizadas umas com as outras, no quadro de um programa coerente y 3) é formulado e implementado pela autoridade governamental pública (governo, ministério, secretaria, etc.) encarregada de garantir sua vigência efetiva e, com isto, de legitimá-la e de dar-lhe "força de lei".43
O exercício do governo político-institucional configura um complexo processo que tem cinco momentos ou fases fundamentais -e só distinguíveis sob o ponto de vista analítico-: a) a identificação de um problema a resolver -surgido de uma demanda social ou institucional- ou de uma situação percebida pelos atores governamentais como suscetível de ser tratada e processada de modo de gerar algum tipo de resolução do problema ou modificação e/ou melhoramento em tal situação;44 b) a formulação de iniciativas ou políticas públicas com a intenção de tratar e processar tal problema ou situação; c) a toma de decisão por meio da qual os atores governamentais habilitados selecionam as iniciativas ou políticas a implementar; d) a implementação das iniciativas ou políticas decididas mediante a execução das ações e normas correspondentes e o gerenciamento e administração que isso implica; e) a avaliação dos resultados das iniciativas ou políticas públicas.45 Além disso, é necessário destacar analiticamente que, sob o ponto de vista do exercício do governo, a efetividade no desenvolvimento competente de cada uma destas dimensões não só resulta da execução de certa capacidade operativo-instrumental no desenvolvimento dos imperativos de implementação correspondentes a cada um destes processos e dos necessários conhecimentos técnico-profissionais acerca dos problemas a resolver ou situações a transformar, dos mecanismos a aplicar, dos recursos disponíveis e das condições sócio-políticas de sua implementação, mas é também o produto da manifestação de uma clara e firme vontade de exercício da condução governamental em favor de formular e implementar políticas com a intenção de encarar a problemática ou situação em questão. Digo, pois, que vontade de direção, conhecimento técnico-profissional e capacidade operativo-instrumental constituem as condições necessárias para uma prática governamental efetiva no logro dos objetivos propostos. Pelo contrário, e sempre desde a perspectiva de quem toma decisões, a falta de efetividade na ação governamental pode resultar tanto de uma certa incompetência instrumental -derivada de um diagnóstico inapropriado da problemática a resolver e/ou da política ou iniciativa a implementar para isso, de um inadequado desenho e formulação de iniciativas e políticas ou de uma marcante imperícia e incapacidade na implementação da mesma- quanto de um acentuado desconhecimento técnico-profissional e/ou da falta de uma firme vontade de condução e execução de ações públicas.
Neste quadro, e assim como o ressaltam tanto Lagroye quanto Meny e Thoenig, deve se considerar que, a partir do grau de desenvolvimento, diversidade e diferenciação institucional que têm desdobrado os Estados atuais, os processos governamentais de decisão e implementação de políticas e iniciativas públicas guardam um elevado grau de complexidade "impossível de reduzir à bela ordem da concatenação lógica como pretendem aqueles que arrogam-se o mérito de controlá-las". Tal complexidade não só deriva da magnitude das problemáticas institucionais ou sócio-políticas a resolver ou da disponibilidade de recursos geralmente escassos, mas também do fato de que no processo governamental intervêm uma multiplicidade de atores com distintas visões, interesses e estratégias políticas, trate-se de diferentes pessoas, grupos ou setores governantes ou do funcionário público, ou trate-se de distintos grupos, setores ou organizações sócio-políticas -não estatais- intervenientes em todas ou algumas das etapas ou dimensões do mencionado processo. Neste sentido, deve se destacar que as iniciativas e políticas públicas não resultam da intenção, vontade ou racionalidade dos atores encarregados de decidi-las e aplicá-las, mas são o produto de uma complexa trama de interações sócio-políticas na que intervém essa multiplicidade de atores entre os que se estabelecem determinadas relações de interdependência.
La acción pública no se limita a los actores formales: políticos y funcionarios. Incorpora a otros actores que, en principio, no tienen nada que ver con el "juego político", pero cuyo comportamiento y presencia cuentan en la medida en que las realizaciones públicas se transforman en impactos sociales.46
Dando continuidade, a presença e participação no processo governamental também pode ser protagonizada por organismos ou instituições estatais -como, por exemplo, as Forças Armadas, as universidades, etc.- que, sob o ponto de vista formal, não detêm a atribuição de atuar na formulação, decisão e/ou implementação de determinadas ações públicas mas que, de fato, intervêm -segundo suas perspectivas e interesses e conforme ao grau relativo de autonomia institucional e de capacidade de poder que sustentam- com a finalidade de influir, pressionar e até impor certas temáticas, critérios, ações e programas institucionais. Se estes aspectos fossem deixados fora e se tomassem aqueles traços das políticas públicas como etapas sucessivas e racionalmente desenvolvidas pelos governantes e administradores do Estado, não se apreciaria justamente a diversidade, parcialidade e variabilidade das motivações, ações e interações efetivas que levam a cabo os distintos atores participantes do processo governativo.
En última instancia, se podría concebir esos procesos como una mezcolanza de interacciones variadas, accidentalmente vinculadas unas con otras, que excluyen todo esquema racional y ponen en contacto a grupos que actúan en función de intereses heterogéneos para resolver problemas que perciben de distintas maneras.47
Contudo, o Estado configura uma estrutura sócio-política altamente institucionalizada, codificada e estruturada em torno de um conjunto de papéis orgânico-funcionais objetivados em uma combinação de funções e procedimentos racionalmente estabelecidos. As variadas interações que se articulam em torno destes parâmetros codificados estão muito 'rotinizadas' e habitualizadas; isto supõe um funcionamento assentado em percepções, mecanismos, orientações e condutas relativamente normalizadas e racionalizadas. O reconhecimento dos papéis e funções objetivados dentro da administração estatal, somado à mencionada regularização de percepções, de linhas de ação e de critérios de implementação e controle, impõem uma certa "racionalidade limitada no processo do qual resulta uma política pública". Pode se observar, assim, que o ato através do qual as iniciativas ou políticas são formalmente promulgadas -como lei, decreto, resolução, regulamento ou ordenança- não constitui a origem dessa iniciativa ou dessa política. Mas, através dessa ação formal de promulgação, toda iniciativa ou política pública resultante das complexas interações que deram contexto a sua formulação, se converte em ato legal e legítimo de governo por meio do qual, segundo Lagroye, "o que era[...] uma mera interação entre agentes variados adquire, pelo menos simbolicamente, um valor de regulamento para toda a sociedade".48
1.5) O conceito de relações cívico-militares, sua história e algumas redefinições.
Foi o teórico norte-americano Samuel Huntington quem introduz uma conceituação pioneira do termo relações cívico-militares no âmbito das ciências sociais. Em seu já clássico estudo O soldado e o Estado publicado na década do 50,49 estabeleceu que o foco principal dessas relações está centrado nas vinculações estabelecidas entre o Estado e o "corpo de oficiais", configurando um sistema de elementos interdependentes e mutuamente referidos no que qualquer alteração das projeções, orientações e posição de algumas destas instâncias produziria mudanças nas outras.
El cuerpo de oficiales es el elemento de dirección activa de la estructura militar y es responsable de la seguridad militar de la sociedad. El Estado es el elemento de dirección activa de la sociedad y es responsable de la distribución de recursos entre valores importantes que incluyen la seguridad militar. Las relaciones sociales y económicas entre los militares y el resto de la sociedad normalmente reflejan las relaciones políticas entre el cuerpo de oficiales y el Estado. En consecuencia, las analizar las relaciones cívico-militares, la necesidad primordial consiste en definir la naturaleza del cuerpo de oficiales. ¿Qué tipo de cuerpo es el cuerpo de oficiales? ¿Qué tipo de hombre es el oficial militar?.50
Aliás, ao identificar a segurança militar da sociedade como o âmbito orgânico-funcional e de responsabilidade administrativa exclusivo das Forças Armadas e ao reconhecer ao Estado como instrumento do governo nacional projetado sobre o conjunto da sociedade e da esfera pública -da qual a segurança militar configura uma dimensão ou aspecto entre outros-, o autor outorga lhe ao Estado, mais precisamente, ao governo civil, uma responsabilidade e competência funcionalmente mais ampla e hierarquicamente superior com relação àquelas sustentadas pelas Forças Armadas. Deste modo, Huntington estabelece que as relações cívico-militares supõem "sempre" a subordinação castrense às autoridades governamentais -que são, logicamente, autoridades civis- ou, dito em seus termos, implicam sempre o "controle civil sobre os militares".
Em função disso, segundo este autor, o estúdio do papel dos militares na sociedade moderna deve se concentrar na análise do poder relativo que existe entre os civis e militares, no quadro de relações cívico-militares articuladas sobre a base do controle civil sobre os fardados. Em sua interpretação, o controle civil obtém-se na medida em que o poder do grupo militar se reduz, o que significa que o problema básico das relações cívico-militares gira em torno de uma interrogação central: "como pode minimizar-se o poder militar? ". Para Huntington existem duas formas diferentes de lográ-lo, às que define como modalidades típicas de controle civil: o controle civil subjetivo e o controle civil objetivo.
O controle civil subjetivo constitui a forma mais simples de minimização do poder dos fardados e consiste em levar "ao máximo o poder dos grupos civis com relação aos militares". Porém, uma situação como esta, segundo Huntington, resulta inconsistente devido à permanente existência de conflitos entre os diversos setores políticos civis que sustentam uma imensa variedade de interesses e estratégias divergentes e que, nesse quadro, tendem a considerar o controle sobre as instituições militares como um recurso de poder para enfrentar as disputas mantidas com outros grupos contrários. O controle civil subjetivo sempre significa levar ao máximo o poder de algum grupo ou de vários grupos civis particulares mas às expensas de que o poder militar assuma projeções políticas não militares. Isto é, a condição de que os militares se politizem no sentido de apoiar algum grupo civil e, assim, se subordinem politicamente a ele.
Segundo Huntington, as particularidades e a dinâmica da modalidade subjetiva de controle civil variaram substancialmente com a profissionalização da organização militar -isto é, com o surgimento da profissão militar-, o que significou a aparição na vida castrense do que se chamou de novos imperativos militares derivados das características funcionais e orgânicas de instituições castrenses profissionalizadas. Isto, por sua parte, converteu em obsoletas as modalidades de controle civil subjetivo e, ao mesmo tempo, permitiu a emergência de novas formas de controle civil.
El surgimiento de la profesión militar transformó el problema de las relaciones cívico-militares complicando los esfuerzos de los grupos civiles para llevar al máximo su poder sobre los militares. Tales grupos ahora estaban enfrentados no sólo con otros grupos civiles con metas similares sino también con imperativos militares nuevos, independientes y funcionales. La constante afirmación de las formas particulares de control civil subjetivo exigía que estos imperativos fueran negados o transformados. Si esto no se podía hacer, el control civil en el sentido subjetivo se volvía imposible. Algunos principios nuevos eran necesarios para gobernar las relaciones entre los imperativos militares funcionales y el resto de la sociedad.51
Estes "novos princípios" delinearam o que o autor denominou controle civil objetivo, modalidade centralmente baseada na "maximização do profissionalismo militar", o que diferenciava a substancialmente do controle civil subjetivo.
El control civil subjetivo logra su fin al civilizar a los militares, hacerlos el espejo del Estado. El control civil objetivo logra su fin militarizando a los militares, haciéndolos la herramienta del Estado. El control civil subjetivo existe en una variedad de formas; el control civil objetivo sólo en una. La antítesis del control civil objetivo es la participación militar en la política; el control civil decrece en la medida que los militares se comprometen progresivamente más en la política institucional, de clase y constitucional. El control civil subjetivo, por el otro lado, presupone este compromiso. La esencia del control civil objetivo es el reconocimiento del profesionalismo militar autónomo; la esencia del control civil subjetivo es la negación de la esfera militar independiente.52
Pois bem, se o requisito básico do controle civil está dado pela minimização do poder militar, o controle civil objetivo consegue esta meta pela via da profissionalização militar e, em seu interior, através da geração de um conjunto de "atitudes e comportamentos profissionais" orientados a garantir a prescindencia política dos militares e, desse modo, a converter as Forças Armadas em um "instrumento do Estado politicamente estéril e neutral". Por conseguinte, para Huntington, a profissão militar é absolutamente incompatível com a intervenção dos fardados na vida política de seu pais.
La política está más allá del alcance de la competencia militar, y la participación de oficiales militares en la política socava su profesionalismo, reduciendo su competencia profesional, dividiendo la profesión en contra de sí misma y sustituyendo los valores profesionales por valores ajenos. El oficial militar debe permanecer políticamente neutro.53
Assim sendo, a profissão militar tem como um dos seus atributos constitutivos a plena subordinação do corpo de oficiais ao governo estatal, o que só pode se desenvolver se as Forças Armadas estão institucionalizadas como instrumento estatal ao serviço da segurança militar da Nação e no condição da estrita obediência ao governo e a sua política.
La profesión militar existe para servir al Estado Para brindar el servicio más alto posible, toda la profesión y la fuerza militar que conduce debe estar constituida como un instrumento eficaz de política estatal. Dado que la conducción de la política sólo viene desde el nivel superior, esto quiere decir que la profesión tiene que estar organizada según una jerarquía de obediencia. Para que la profesión desempeñe su función, cada nivel dentro de ella debe ser capaz de ordenar la obediencia instantánea y leal de los niveles subordinados. Sin estas relaciones, el profesionalismo militar no existe. En consecuencia, la lealtad y la obediencia son las virtudes militares más altas.54
Deste modo, este autor não deixa de contemplar a possibilidade da intervenção militar em política, mas reafirma que quando isto acontece está-se cerceando o sentido da profissão militar, isto é, está-se negando a existência mesma de tal profissão.
Por falar nisso, esta perspectiva requer certas considerações, particularmente levando em conta a experiência histórica dos países que atravessam por processos de democratização e com a intenção de realizar, como conseqüência disso, uma revisão conceptual crítica.55 Vejamos isto.
Huntington centra sua argumentação na afirmação de que as relações cívico-militares articulam-se sobre a base do controle civil sobre os fardados, atribuindo-lhes um papel de subordinação institucional perante as autoridades governamentais. Deste modo, tanto o exercício efetivo da condução civil sobre as Forças Armadas quanto a subordinação institucional destas àquelas autoridades constituem atributos das relações cívico-militares que, no interior de sua exposição, estão histórica e conceptualmente subentendidos. Isto, evidentemente, é heuristicamente útil se do que se trata é de analisar o processo político dos países que foram tomados como base empírica par sua conceituação, vale dizer, os Estados Unidos e a Europa Ocidental, pois neles as relações cívico-militares efetivamente se deram e se caracterizam por uma situação de controle civil efetivo sobre as Forças Armadas.
Contudo, se a condução civil e a subordinação militar configuram os atributos constitutivos das relações cívico-militares, resulta contraditório propor, assim como o faz o autor, que o "problema básico" do controle civil está na possibilidade de "minimização" do poder do setor militar, dado que isso supõe considerar este setor como instância determinante central do controle civil, colocando, ao mesmo tempo, à ação governamental da dirigência política como um fator secundário das relações cívico-militares. Em efeito, não tem coerência lógica subentender a subordinação castrense ao governo civil e, ao mesmo tempo, afirmar a centralidade do ator militar e seu grau de profissionalismo como fatores determinantes do controle civil. Por sua parte, sob o ponto de vista lógico e histórico, da exposição de Huntington não surgem elementos que fundamentem a "necessidade primordial" de abordar as relações cívico-militares ponderando a análise da "natureza do corpo de oficiais", isto é, priorizando analiticamente o ator militar sobre os atores civis, assim como este autor sugere em seu texto. Ademais, isto impõe uma importante limitação conceptual dado que volta secundário analiticamente o comportamento e as orientações dos atores civis que administram o Estado no referente às instituições militares e a suas responsabilidades institucionais de condução governamental sobre elas. Mesmo pressuposto o exercício efetivo do controle civil sobre o poder militar, as variantes, conteúdos e modalidades que historicamente pode adquirir esse controle derivam tanto das projeções do poder militar quanto das orientações e particularidades da dirigência civil no exercício de suas funções de governo. Isto é, nem as relações cívico-militares nem o controle civil pressuposto nelas dependem, em sua constituição e desenvolvimento, exclusivamente do tipo do corpo de oficiais existente o do grau de profissionalidade militar alcançado, mas resultam das vinculações históricas estabelecidas entre civis e militares no quadro de cenários situados espaço-temporalmente; por isto deve colocar-se no mesmo nível de ponderação conceptual tanto o ator civil quanto o ator militar. Assim sendo, na presunção do exercício do controle civil sobre as Forças Armadas -seja em sua modalidade subjetiva ou na objetiva-, Huntington não desenvolve nenhum tipo de indagação teórica ou conceptual sobre as condições e particularidades que permitem, do lado do polo civil, a articulação desse controle. Esta "ausência" impede "problematizar" e escolher como objeto de reflexão e estudo o comportamento e as orientações da dirigência política civil perante a temática militar.
Em definitiva, estas ligeiras considerações evidenciam as limitações e as insuficiências conceituais da ponderação teórica deste autor, mas nada indicam sobre as deficiências empíricas que dela surgem quando se a contrasta com a realidade histórico-política dos países sul-americanos. Vejamos isso.
No passado recente da maioria dos países sul-americanos, não foi efetiva a subordinação castrense ao poder político, nem foi passivo o papel da dirigência civil perante a paulatina autonomização política dos militares. A intervenção política autônoma dos fardados, a legitimação civil desse intervencionismo e/ou o desenvolvimento de experiências de dominação militar-autoritárias, configuraram padrões repetidoss de seus respetivos processos políticos. Vale dizer que as relações cívico-militares que antecederam historicamente aos recentes processos de democratização, estiveram marcadas, a bem da verdade, pela ausência de controle civil efetivo e continuado sobre as Forças Armadas. Além disso, essa ausência não configurou uma conseqüência exclusiva da crescente politização autônoma dos fardados nem do comportamento autoritário dos chefes militares, mas também respondeu às orientações e à ação da dirigência civil -ou de parte dela- que, em determinadas ocasiões e sob diversas formas, favoreceu, incentivou, legitimou e consolidou a autonomia política das Forças Armadas e/ou a emergência de regimes autoritários de diversos signos.
Na maioria dos casos, as transições para regimes democráticos foram diretamente controladas ou, ao menos, condicionadas pelas Forças Armadas ou por determinados chefes ou setores militares, dando lugar, em certas circunstâncias, a dinâmicas negociadas entre estes e os atores civis. Também, as instaurações democráticas acontecidas depois dessas transições, se bem que implicaram a "volta aos quartéis" dos fardados e o início de uma nova etapa de governos civis, não significaram a automática subordinação das Forças Armadas ao poder político nem o imediato sumiço da autonomia e da participação política dos militares Também não asseguraram a competência e a capacidade civil necessária para exercer efetivamente a autoridade e direção governamental sobre as instituições militares e, em determinadas conjunturas, nem sequer impediram que os governos civis e alguns grupos partidários e sociais hajam instigado e reafirmado a intervenção autonômica dos militares em assuntos políticos de importante gravitação institucional e social. Isto quer dizer que a existência de um regime formalmente democrático e, em seu interior, de um governo democraticamente eleito, não tem implicado por se mesmo a efetivação do controle civil sobre as Forças Armadas. O fato de que os militares não ocupassem os cargos governamentais e de que, em determinadas ocasiões, detivessem uma capacidade limitada de projeção política, não redundou em uma situação de subordinação militar às autoridades civis nem outorgou a estas o impulso e a destreza governamental necessários para efetivar o controle civil bem sucedido. Além do mais, não foram poucas as oportunidades nas que pôde-se observar a existência de chefes e instituições militares inclinados a recusar todo tipo de ação ou estratégia que tendesse à participação de suas forças na vida política do pais ou em algum setor ou função do governo estatal. Em muitas circunstâncias, seus comportamentos apontaram claramente a encontrar condições políticas e institucionais propícias para a subordinação ao governo democrático. Para isso nem sempre foi correspondido por parte dos atores civis com o fim de impor suas pautas institucionalizadas de controle sobre os fardados. Ainda existindo de parte das Forças Armadas uma clara vontade de subordinação às autoridades civis, não foram poucas as ocasiões nas que estes foram incapazes para exercer a condução sobre os militares, quando não se mostraram simplesmente desinteressados ou indiferentes perante à temática militar.
Pois bem, quando Huntington considera o controle civil sobre as Forças Armadas como propriedade inerente das relações cívico-militares, esgotando, deste modo, o espectro de vinculações possíveis entre os atores civis e militares no interior do sistema político, descarta de antemão a possibilidade de que historicamente articulem-se diversas modalidades de insubordinação militar às autoridades governamentais, de intervenção política autônoma dos militares ou de legitimação e participação civil nessa intervenção. Ou seja que, em sua proposta, se dá por subentendido, conforme já disse, tanto o exercício efetivo da condução civil-governamental quanto a subordinação militar ao mando civil, como práticas institucionais amplamente sedimentadas e legitimadas. Isso impede considerar como eventualidade histórica o que, segundo assinalei, configurou o conjunto de tendências características do desenvolvimento político de nossos países, isto é, que os militares intervenham autonomamente na vida política tutelando o sistema político e até montando regimes autoritários por eles dirigidos e, em particular, que grande parte da dirigência civil não só tenha sido incapaz de efetivar competentemente o mando sobre as Forças Armadas, ou que tenha se mostrado indiferente ou ignorante diante a temática castrense, mas que em diferentes circunstâncias, tenha incentivado, favorecido e legitimado tanto o intervencionismo político autônomo das Forças Armadas quanto a emergência e consolidação de experiências militar-autoritárias.
Por sua vez, no momento em que Huntington afirma que a modalidade mais eficiente e estável de controle civil sobre os militares está dada pelo controle objetivo, o faz identificando a profissionalidade militar com a prescindencia -não participação- política dos fardados, vale dizer, tomando a não intervenção castrense em política como uma qualidade própria da profissão militar. Em sua opinião, esta se estrutura sobre os fundamentos da estrita subordinação castrense aos governantes civis do Estado. Isto significaria, então, que em nossos países não houve nem há Forças Armadas profissionais, já que neles a intervenção autonômica de instituições militares em política -inclusive a intervenção de instituições que sob o ponto de vista organizacional achavam-se altamente profissionalizadas- configurou um traço recorrente de sua história institucional.
Em um sentido mais integral que o desenvolvido por Huntington, cabe assinalar que todo processo de profissionalização militar implica, por um lado, a racionalização e articulação da estrutura organizativa das Forças Armadas em quanto que instituições do Estado e, por outro lado, a socialização e legitimação do universo de valores, idéias e teorias que funcionam como condições de referência simbólico-culturais entre seus membros, no contexto de um espaço institucional apoiado centralmente na disciplina orgânico-funcional, a subordinação e a hierarquia.56 Sob este ponto de vista, é possível a profissão militar como um atributo institucional definido sobre o fundamento do grau de desenvolvimento e do nível de complexidade dos elementos e aspectos que configuram tanto a dimensão teórico-valorativa (o corpo teórico-doutrinal, os valores éticos e o sentimento de identidade corporativa)57 quanto a dimensão organizacional (a estrutura burocrático-administrativa, o sistema educativo próprio, a estrutura escalonada e desagregada de mandos, o regime estabelecido de ascensão, as formas institucionais de atualização de conhecimentos profissionais e as normas que regulam o funcionamento institucional e a disciplina interna)58 das instituições castrenses. Neste quadro, a profissão militar não se define sobre a base da prescindencia política de seus membros mas mediante suas propriedades organizacionais e simbólicas, o qual converte o em um conceito heuristicamente útil para analisar a realidade política de nossos países.
Assim, enquanto que para Huntington os dilemas e desafios das relações cívico-militares se limitam às diferentes modalidades de controle civil -subjetivo ou objetivo- sobre as Forças Armadas e ao grau de profissionalismo destas, o que esteve e está "em jogo" em nossos países foi e é a possibilidade mesma do controle civil sobre os fardados em cenários onde o exercício efetivo do mando civil e a subordinação militar não estiveram nem estão pressupostos ou garantidos.
Em suma, estas considerações prestam conta de que a proposição teórica de Huntington -desenvolvido evidentemente para analisar os Estados Unidos e os países de Europa Ocidental- e, especificamente, o significado dado ao conceito relações cívico-militares, resulta heurística e empiricamente deficiente para analisar a realidade histórica e política dos países sul-americanos e, em particular, para analisar a questão do controle civil sobre as Forças Armadas nos processos de democratização iniciados nestes países depois das longas experiências militar-autoritárias vividas nos anos anteriores.
1.6) Modalidades de relações cívico-militares e uma nova conceituação.
Por todo o dito, as condições e características do controle civil sobre os militares nos processos de democratização só podem ser integralmente analisadas se o conceito relações cívico-militares não restringe-se apenas às formas e modalidades mediante as quais os dirigentes políticos civis exercem o controle efetivo sobre as Forças Armadas. Por conseguinte, o conceito em questão, segundo o significado que originalmente cunhou o teórico norte-americano, deve ser ampliado e de redefinido. Vejamos.
Conforme já indiquei na primeira parte, as relações cívico-militares desenvolvem-se na conjuntura das interações estabelecidas entre o governo estatal, as instituições militares e a sociedade política e civil.59 Neste sentido, entendo estas relações como o conjunto de vinculações estabelecidas entre a dirigência política civil60 de um sistema político e o corpo de oficiais superiores das Forças Armadas do Estado.
Assim definidas, as relações cívico-militares se articulam em duas dimensões fundamentais: a) as interações estabelecidas entre os atores governamentais e as Forças Armadas, em quanto instituições componentes do Estado; e b) as interações desenvolvidas entre os militares e o conjunto dos atores e organizações não governamentais pertencentes à sociedade política e civil. Com certeza, a primeira das dimensões assinaladas, isto é, as relações governo-Forças Armadas, configura a instância mais relevante na medida em que em seu contexto determinam-se as orientações e os parâmetros básicos do conjunto das relações cívico-militares e, em particular, do controle civil, assim como o considerou Samuel Fitch:
La relación que existe entre las fuerzas armadas y el resto del aparato estatal es crítica. La institución militar puede ser subordinada, autónoma o dominante en sus relaciones con los funcionarios del gobierno. En el caso extremo de un gobierno institucional militar, los más altos funcionarios del gobierno son nombrados por las fuerzas armadas y están sujetos a diversos grados de control militar sobre la política del Estado. Dentro de los regímenes civiles, las relaciones políticas entre las autoridades militares y civiles y específicamente con el presidente pueden variar considerablemente. De igual manera, en el campo profesional, varía enormemente el poder de las autoridades civiles o militares para controlar la política de defensa y militar.61
Vistas deste modo, as relações cívico-militares não supõem exclusivamente nem se esgotam no controle civil sobre as Forças Armadas, mas que em determinadas circunstâncias históricas podem denotar e fornecer o cenário para -assim como aconteceu ao longo de nossa experiência histórica e como o ressalta este autor- modalidades diversas de governo de militares no quadro de regimes militar-autoritários ou situações nas que se combinam administrações civis deficientes e Forças Armadas politicamente autônomas.
Ao mesmo tempo, a problemática exposta por Fitch remete à questão central das relações cívico-militares: "quem" e "como" se exerce o governo político-institucional e o comando orgânico-funcional sobre as Forças Armadas.62 Isto é, "quem" e "como" pratica-se a condução institucional e militar das Forças Armadas no que se refere a (i) as missões e funções institucionais específicas dessas organizações em quanto instituições estatais, (ii) a estrutura e administração orgânica, funcional e doutrinal das mesmas (estratégia, desdobramento, instrução, educação, treinamento, equipamento, pessoal, doutrina, etc.), (iii) os organismos, mecanismos e canais institucionais através dos quais o governo estatal se vincula com as Forças Armadas (estrutura ministerial e organismos e categorias de condução política e de comandos militares) e (iv) as questões e atividades derivadas do funcionamento político-institucional das Forças Armadas ou que suponham a vinculação ou intervenção institucional destas -e sobre as que o poder político deve decidir certas iniciativas ou políticas-.63
Estas dimensões que, em seu conjunto, configuram as esferas institucionais básicas da política militar,64 adquirem particular relevância em processos de democratização iniciados com a transição desde regimes autoritários nos que as Forças Armadas exerceram o governo institucional do Estado, devido a que o eixo problemático central das relações cívico-militares desenroladas nesses processos passa por estabelecer quem decide e como se definem, formulam, implementam e controlam os lineamentos básicos de ditas esferas.
No que concerne ao primeiro aspecto -isto é, "quem" manda-, a condução político-institucional e o comando orgânico-funcional sobre as Forças Armadas pode supor um conjunto de possibilidades típicas que vão desde seu exercício efetivo de parte do governo central do Estado (seja de caráter civil ou militar, no quadro de um regime democrático ou autoritário) até seu exercício efetivo de parte das próprias cúpulas militares independentemente do governo estatal. E respeito ao segundo aspecto -isto é, "como" se manda-, é possível que o comando governamental possa exercer-se sob um espectro de modalidades que englobam desde formas de liderança pessoais e adesões particularistas de parte das Forças Armadas para determinados setores sociais e políticos governamentais (sejam civis ou militares) até modalidades e mecanismos baseados e articulados em torno à vigência de um ordenamento institucional legal-racional de caráter impessoal.
Ao redor destas dimensões e levando em conta a experiência histórica dos países em processo de democratização, é possível distinguir três modalidades típico-ideais de relações cívico-militares: a) modalidade de controle civil-democrático; b) modalidade de domínio militar e c) modalidade de dualismo cívico-militar.
Em função da análise das características e condições do controle civil sobre as Forças Armadas articuladas durante os processos de democratização, resulta fundamental e indispensável conceituar com clareza a modalidade de controle civil dentro de um regime democrático, dado que este tipo ideal marca o ponto de referência central desde onde é possível -e necessário- empreender a análise e efetuar as interpretações compreensivas tanto do processo político aberto com as recentes instaurações democráticas quanto da etapa histórica que as antecedeu e do período pós-transicional desenvolvido depois da mencionada instauração.
A centralidade analítica adjudicada à modalidade de controle civil certamente não deriva de uma mera decisão metodológica desconexa do processo político dos países sul-americanos, mas, pelo contrário, é a conseqüência de um conjunto de particularidades inscritas no processo histórico destes países. Assim como se expôs, durante as recentes democratizações, o que esteve em discussão e constituiu um aspecto político central -altamente conflituoso e não menos complexo- no referente às relações estabelecidas entre os dirigentes civis que assumiram a condução do estado e as Forças Armadas que "voltaram aos quartéis", esteve dado tanto pelas orientações e projeções desenvolvidas por estes atores acerca da questão do controle civil sobre os fardados quanto pela dinâmica política originada ao redor das disputas, diferenças e conflitos que resultaram disso. Isto é, do mesmo modo que a "possibilidade democrática" era o que estava em jogo, também o estava, nesse mesmo contexto, a "possibilidade de controle civil e de subordinação militar". Por esta razão, considerar à modalidade de controle civil como critério e referência analítica central configura evidentemente uma decisão metodológica, porém, que reflete a "hermenéutica" construída pelos próprios protagonistas da trama histórico-política dos mencionados processos, já que, em definitiva, o controle civil e, em um sentido mais amplo, a consolidação democrática configuram os eixos ou instâncias determinantes em torno às quais atuaram e se projetaram os protagonistas civis e militares ao longo desses anos.
Por sua parte, deve se ressaltar que a tipologia proposta não pretende servir como instrumento analítico-compreensivo das relações cívico-militares situadas em todo tempo e lugar histórico, senão que está construída sobre a base das experiências históricas dos países sul-americanos em processo de democratização e com o fim de abordar analiticamente essas experiências históricas. Isto é, trata-se de uma tipologia "situada historicamente".
1.6.1) Modalidade de controle civil.
Esta modalidade de relações cívico-militares se caracteriza pela existência de uma situação de controle civil sobre as Forças Armadas estruturado em torno de duas condições interdependentes mas analiticamente distinguíveis: a) do lado civil-governamental,65 o exercício efetivo do mando ou governo político-institucional sobre as Forças Armadas e b) do lado militar, a subordinação efetiva às autoridades governamentais. Dito de outro modo em quanto fenômenos mutuamente referidos e articulados, não existe obediência sem o exercício do poder e vice-versa.
Na perspectiva aqui seguida, o controle civil sobre as Forças Armadas desenvolve-se exclusivamente no quadro de um regime político de caráter democrático no qual (i) o governo -executivo e legislativo- é exercido por aqueles dirigentes políticos e setores partidários eleitos popularmente põe meio do sufrágio universal e no que (ii) a subordinação das Forças Armadas aos poderes públicos é efetiva e se articula dentro dos parâmetros institucionais fixados constitucionalmente. Com outras palavras, isto significa que, em um sentido típico ideal, toda democracia supõe o controle civil sobre as Forças Armadas e a subordinação política e profissional das instituições militares ao poder governamental como condição necessária a sua conformação e consolidação como tal.
La democracia requiere no solamente de la subordinación política de las fuerzas armadas ante la voluntad democráticamente determinada de la nación, sino también de su subordinación profesional ante las autoridades estatales designadas democráticamente.66
Aliás, neste quadro, é possível encarar a conceituação desta modalidade a partir da terminologia inicial de Huntington. Para isso resulta apropriado a reformulação efetuada por Ernesto López à definição huntingtoniana de controle civil.67 Este analista propõe uma reinterpretação do esquema conceptual do teórico norte-americano a partir do termo weberiano de dominação. Em vez de indagar sobre as formas mediante as quais é possível reduzir o poder militar -tal como o expressou Huntington-, López propõe abordar a temática do controle civil ao redor das modalidades possíveis para conseguir a subordinação pela via do consentimento das instituições militares às autoridades constituídas, sem considerar tal subordinação como subentendida. Assim, define o controle civil subjetivo como:
[...] aquella tentativa de elaborar la subordinación castrense sobre la base de una adhesión particularista de los uniformizados a algún grupo o sector político civil. Los motivos de esta adhesión particularista podrían ser: la identidad o semejanza de opiniones, la lealtad personal, la conveniencia material institucional o individual y el acuerdo de partes, entre otros.68
E o controle civil objetivo como:
[...] aquella tentativa de elaborar la subordinación castrense a los poderes constituidos sobre la base de la vigencia de una legitimidad del tipo racional/legal. En este caso se obedece a la normativa vigente, a aquello que marca la ley. La obediencia no reposa sobre una adhesión fundada en motivos particulares sino en el respeto a las normas. Los uniformados deben obediencia a los poderes constituidos porque lo marca la ley, porque rige en el estado nacional un orden normativo abstracto e impersonal que establece que las Fuerzas Armadas deben estar subordinadas a la conducción política del mismo. En este contexto es esperable -más no inevitable- que una mayor profesionalización de las instituciones castrenses redunde en prescindencia política y en subordinación.69
Deve se ressaltar que através da reformulação proposta por López está se movendo o eixo de ponderação analítica desde os atores militares para os atores civis dado que, sob este perfil conceptual, a questão central do controle civil está prioritariamente determinada pela capacidade e competência da dirigência política para o desenvolvimento de iniciativas e políticas em cujo âmbito seja possível conseguir a obediência necessária dos fardados, uma obediência montada sobre o consentimento, por parte das instituições militares, do poder político. Deste modo, a projeção civil em quanto instância superior de condução estatal configura uma dimensão fundamental na estruturação das relações cívico-militares e do controle civil sobre os fardados, pois a mencionada projeção -suas orientações, tendências e características- determina o contexto institucional no que se definem a estrutura orgânica, funcional e doutrinal das Forças Armadas.
Por tanto, esta modalidade supõe, do lado do ator civil, o exercício efetivo e competente da condução governamental -executiva e legislativa- sobre as Forças Armadas acerca de suas missões e funções específicas, de sua estrutura orgânica, funcional e doutrinal, dos mecanismos e canais mediante os quais se exerce o governo institucional (esquema ministerial e de comando político e militar, intervenção parlamentária) sobre as mesmas e de todas aquelas questões e atividades derivadas do funcionamento político-institucional das Forças Armadas ou que suponham a vinculação ou intervenção institucional destas.
Detalhando, se, assim como se assinalou antes, toda forma competente de exercício do governo político-institucional -neste caso referido à condução sobre as Forças Armadas- supõe como condições de efetividade o desenvolvimento de uma clara vontade de condução, da aplicação de conhecimentos técnico-profissionais e da manifestação de uma certa capacidade operativo-instrumental; então, nem sempre a falta de controle civil sobre as Forças Armadas se origina ou deriva exclusivamente do intervencionismo político autônomo dos fardados mas, em algumas ocasiões, a mencionada falta pode resultar da ineficiência e/ou incapacidade governamental para exercer competentemente suas funções de comando político-institucional sobre os fardados, já seja por imperícia instrumental, pela carência de conhecimentos técnico-profissionais apropriados e/ou pela falta de uma firme vontade civil para o exercício do mando, assim como aconteceu -e acontece- em diversas ocasiões durante os processos políticos dos países de América do Sul.
Todo indica que, depois de um passado marcado pelo intervencionismo político autônomo dos militares, o controle civil otimiza-se quando se articula em um contexto caracterizado por um elevado grau de institucionalização legal de tipo racional-burocrática, ou, segundo a conceituação desenvolvida acima, quando se trata de uma modalidade objetiva de controle civil, pois toda tentativa de controle civil articulada ao redor de formas particularistas de subordinação de caráter subjetivo evidentemente favoreceria novas modalidades de politização das relações cívico-militares e de relativa autonomia militar.70 Mas deve se levar em conta que a mencionada modalidade é efetiva se é competente o exercício do governo civil-institucional dobre as Forças Armadas.
Por sua parte, do lado das Forças Armadas, a subordinação militar ao governo civil do Estado implica a existência de um mínimo de vontade de obediência, isto é um mínimo de consenso acerca da legitimidade do mandante, seja em um sentido subjetivo, seja em um sentido objetivo. Esta vontade mínima pode se originar em um sem-número de variadas motivações que podem ser de caráter pessoal, grupal ou coletiva, tais como a crença na legitimidade da ordem democrática, a valoração positiva da hierarquia e da subordinação institucional como imperativo orgânico-funcional, a adesão a determinadas políticas militares ou lineamentos governamentais, o apego a certos interesses particularistas ou setoriais, o entendimento de que não existe outra alternativa possível que não seja prestar obediência ao poder político ou de que os custos -políticos, institucionais e/ou materiais- de fazê-lo são sempre menores perante a possibilidade da desobediência, o convencimento de que o protagonismo político autônomo dos militares pode causar profundas deformações orgânicas, funcionais e doutrinais às Forças Armadas, a convicção acerca da validade de um determinado ordenamento jurídico-legal, etc.
O oposto ao controle civil está dado pela ausência de subordinação militar ao poder político e, no seu interior, pela autonomização política das Forças Armadas. Segundo Weber:
Autonomía significa, al contrario de heteronomía, que el orden de la asociación no esté otorgado -impuesto- por alguien fuera de la misma y exterior a ella, sino por sus propios miembros y en virtud de la cualidad de tales (cualquiera sea la forma en que esto tenga lugar).71
Assim, a autonomia política das instituições castrenses supõe a capacidade destas para consolidar uma marcada independência doutrinal, orgânica e funcional em seu desenvolvimento e projeção institucional perante o governo estatal e perante a sociedade política e civil e, a partir da qual, podem se desenvolver formas autosustentadas de práticas políticas.
É, justamente, em função disto que deve se distinguir claramente a autonomia política das Forças Armadas da autonomia profissional das mesmas. Esta última está determinada pelas condições, faculdades, e imperativos profissionais derivados da organização e do funcionamento institucional (tal como acontece com todo organismo estatal com especificidade profissional) das estruturas castrenses e não é incompatível com o controle civil e a subordinação aos poderes públicos nem necessariamente conduz ao intervencionismo político autônomo dos militares.72 Ao contrário disso, e assim como o indica Pion-Berlin, a autonomia política expressa se como a cara oposta do controle civil:
La autonomía política militar [...] se refiere a la aversión y hasta el desafío castrense al control civil. Si bien son parte del estado, los militares actúan con frecuencia como si estuvieran por encima y más allá de la autoridad constitucional del gobierno.73
E a isto, este autor acrescenta:
El grado de autonomía política es una medida de su determinación para despojar a los civiles de sus prerrogativas políticas y reclamarlas para sí mismos. A medida que las fuerzas armadas acumulan poder, protegen cada vez más sus logros. Cuanto más valiosos y atrincherados son sus intereses, más vigorosamente resistirán la transferencia del control de los mismos a los dirigentes democráticos.74
Deste modo, a autonomia política militar permite e dá lugar à constituição dos fardados como atores políticos relevantes dotados de uma relativa capacidade de projeção política autônoma sob diferentes formas e sentidos, o que evidência que a autonomia política militar e o controle civil sobre as Forças Armadas configuram fenômenos reciprocamente inversos.
Porém, a autonomização política das Forças Armadas não deriva unicamente da ação politicamente ofensiva dos militares mas configura um processo de transformação das relações cívico-militares ou, em outra palavras, um processo de mudança cujos fatores determinantes e/ou condicionantes localizam-se tanto no interior das instituições militares quanto na sociedade política e civil e se encontram intimamente ligados entre si. De um lado, é o resultado da corporativização política castrense, isto é, do processo pelo qual as Forças Armadas têm alcançado uma considerável capacidade para definir, em forma independente e desde si mesmas, sua função e papel institucional, seus fins e missões, sua doutrina e ideologia, sua estrutura orgânica e funcional e suas modalidades de vinculação com o resto do aparelho estatal e com o sistema político em geral. De outro lado, é o produto das deficiências civis para articular competentemente modalidades do controle e condução político-institucional sobre as instituições armadas, já seja pelo exercício ineficiente de governo e/ou pelo consentimento outorgado à intervenção política autonômica dos fardados.75
Em suma, o percorrido conceptual desenvolvido até aqui é heuristicamente útil para interpretar e avaliar os processos políticos e as relações cívico-militares quando o que está em questão é o próprio controle civil tal como aconteceu ao longo dos anos recentes em nossos países no quadro das democratizações em andamento. Fica conceituar as modalidades de relações cívico-militares nas que o mencionado controle está ausente e fora de questão em um contexto marcado pela autonomia política militar.
1.6.2) Modalidade de domínio militar.
Esta modalidade de relações cívico-militares se caracteriza pelo exercício institucional do governo estatal por parte das Forças Armadas. Não se trata de um governo militar de caráter personalista ou caudilhista mas de um regime autoritário no que, pela via do "golpe de Estado" e em forma institucional, as Forças Armadas passam a ocupar o aparelho estatal e exercem de modo direto o governo nacional, o que, com certeza, presta conta de uma extrema politização e autonomização das Forças Armadas no contexto de uma também profunda militarização das relações cívico-militares.
Estes regimes podem ser de dois tipos: a) regimes militares provisórios mediante os quais as Forças Armadas limitam-se a intervir em procura de encontrar uma "saída política" auspiciosa -segundo sua perspectiva- a curto prazo, direcionando, orientando e condicionando o processo político local com uma intenção, por um lado, preventiva perante atores e orientações consideradas subversivas de certa ordem proclamada como "normal" ou "necessária", e, por outro lado, restituitória perante a necessidade de restaurar e sustentar essa "ordem normal", conformando governos de caráter transitório e orientador;76 e b) regimes militares institucionais através dos quais as Forças Armadas assumem "institucionalmente" a condução do Estado e, desde lá, desenvolvem um conjunto de políticas tendentes, por um lado, a tentar implantar uma determinada ordem político-social pela via do "disciplinamento repressivo" dos atores e orientações "disfuncionais" ao mesmo e, por outro lado, reestruturar as bases sociais e econômicas vigentes com o fim de criar novas condições estruturais de "desenvolvimento capitalista".77
Sob estes regimes, as instituições militares deixam de ser o instrumento militar do estado subordinado ao poder governamental e se convertem em agentes de arbitragem ou agentes de transformação segundo se trate de um regime militar provisório ou permanente respetivamente. Em um regime militar provisório, a intervenção e atividade política dos fardados acha-se circunscrita à necessidade de destituição da administração civil que antecedia o golpe e ao imediato traspasse do governo aos grupos políticos aliados, podendo, ademais, estabelecer -em forma conjunta com estes- as condições que regularão o jogo político. Isto é, trata-se de um tipo de projeção política delimitada se é comparada com aquela que corresponde a um regime militar institucional, em cujo contexto as Forças Armadas se constituem na instância decisória suprema de dito regime e no âmbito único de formulação e implementação das políticas a seguir acorde às mudanças sócio-políticas procuradas por elas. Neste caso, sua projeção política é autodefinida e auto-sustentada.
Apesar destas diferenças, é destacável que, tanto em um contexto quanto no outro, essas instituições são os atores dominantes do cenário político e social, não só porque exercem o governo estatal mas também porque, desde ai, determinam e impõem as condições e regras do jogo desse cenário e, particularmente, das relações que estabelecem com os atores civis, mesmo nos casos nos que essas condições e regras tenham sido o resultado de certas negociações e/ou acordos com seus aliados civis.
Neste sentido e no quadro do que Alfred Stepan denominou "novo profissionalismo de segurança interna e desenvolvimento nacional"78 -em contraste com o "velho profissionalismo militar" definido por Huntington-, as Forças Armadas, sob esta modalidade, começam a priorizar a "segurança nacional" e, em seu interior, a segurança interna -inclusive por cima da defessa externa do Estado- como função político-institucional central e, nesse contexto, posicionam-se como garantes da preservação de determinados parâmetros e condições políticas, sociais e econômicas por elas formuladas.
Por sua parte, os atores civis, ocupando um espaço de subordinação política perante os fardados e o governo militar, estabelecem com estes diferentes tipos de vinculações dependendo das orientações que guiam suas posições e projeções políticas e do lugar que ocupam respeito do regime autoritário. Assim, tanto as organizações partidárias quanto as corporações empresariais, sindicatos e associações sociais, podem assumir um leque de posições que, em seus extremos, supõem duas alternativas típicas: a) que considerem legítima e valida tanto a intervenção dos militares no processo político quanto a emergência e consolidação do regime militar -em suas diferentes modalidades-, apoiando o e/ou participando do esquema de poder das Forças Armadas já seja formando parte da administração governamental ou servindo como base de sustentação político-social do regime; ou b) que entendam como ilegítima a participação política castrense e o regime militar, assumindo posições críticas perante uma ou outra e/ou formas de oposição -institucionais ou extra-institucionais- inclusive com o risco de ser objetos da repressão político-militar autoritária.
Também deve-se especificar que o nível de intervenção e de protagonismo dos atores civis na configuração do jogo político e das relações cívico-militares durante um regime militar provisório é maior e mais ativo com relação ao existente durante um regime militar institucional no que as condições e regras do processo político são unilateralmente determinadas e impostas pelas Forças Armadas.
1.6.3) Modalidade de dualismo cívico-militar.
Esta modalidade, articulada no contexto de um regime formalmente democrático, se caracteriza por uma situação de ausência de controle civil sobre as Forças Armadas, já seja pela falta de exercício efetivo da condução político-institucional sobre as instituições castrenses por parte dos governantes civis e/ou pela existência de Forças Armadas politicamente autônomas com relação ao poder governamental e à sociedade política e civil. Isto é, supõe uma modalidade intermédia localizada entre uma situação típica de controle civil e outra de domínio militar.
Toda situação de dualismo cívico-militar deriva de fatores inscritos no âmbito civil ou no militar respetivamente, ou da combinação de ambos. Isto dá lugar a duas sub-modalidades típicas de dualismo militar: a que supõe e articula-se ao redor da intervenção política autonômica dos militares e a que encontra sua origem e se estrutura em torno dos defeitos e as insuficiências da dirigência política civil no exercício da condução político-institucional sobre as Forças Armadas.
Na primeira sub-modalidade, à que denominarei de acomodamento militar autônomo,79 as instituições militares, embora não conservem a capacidade de poder político nem o nível de autonomia que detêm no quadro de um regime militar-autoritário, constituem um ator político relevante com certa capacidade de ingerência e intervenção autoformulada e auto-sustentada nos assuntos políticos e sociais não militares. Tal capacidade supõe a conservação e consolidação de um conjunto de esferas e âmbitos polítco-institucionais autônomos respeito do controle e a condução governamental. A estes encraves, Alfred Stepan os chamou de prerrogativas militares:
[...] la dimensión de las prerrogativas institucionales de los militares se refiere a esas áreas donde, cuestionadas o no, las fuerzas armadas en tanto institución suponen tener un derecho adquirido o un privilegio, formal o informal, para ejercer un control efectivo sobre su gobierno interno, para juzgar un rol dentro de áreas extralimitares en el aparato del Estado, o incluso para estructurar relaciones entre el Estado y la sociedad política y civil.80
Com certeza, como o reconhece este autor, essas prerrogativas institucionais podem se positivar juridicamente na estrutura legal do Estado -inclusive, no nível constitucional- ou bem podem existir como prática política "habitual" e, mesmo assim, podem ter diferentes graus de manifestação e/ou amplitude segundo a intensidade de seu exercício e as diferentes esferas nas que se expressa.
Pois bem, o nível e a forma de intervenção política militar variam segundo o grau de autonomização que detêm as instituições armadas e, em seu interior, segundo o conjunto de prerrogativas institucionais que têm conseguido preservar. Trata-se, pois, de diferentes níveis de autonomização e de diferentes modalidades de participação militar no processo político. Neste sentido, podem se distinguir dois tipos puros e extremos de intervenção política dentre os quais desenvolve-se toda forma de projeção autonômica dos fardados no contexto de um regime formalmente democrático: a tutelar e a conservativa.81
A intervenção tutelar se produz quando as Forças Armadas projetam-se efetivamente -não apenas discursivamente-82 como atores políticos relevantes cumprindo duas funções: a) como garantes da conservação e a vigência de certas condições e padrões de funcionamento e estruturação do sistema político no que se refere à organização institucional do Estado -estrutura e relação entre os órgãos executivo, legislativo e judicial do governo-, à vinculação do Estado com a sociedade civil e política e/ou ao funcionamento das organizações partidárias e sociais em geral; e b) como árbitros do processo político -ao menos, em última instância- perfilados a direcionar e orientar tal processo ao redor das condições político-social impostas unilateralmente por o poder militar.
Este tipo de intervenção pode abarcar um amplo e variado arco de possibilidades. No que concerne à garantia da institucionalidade, essas possibilidades podem supor o estabelecimento de certas prerrogativas e prescrições constitucionais, a imposição de determinado esquema ministerial, de certas funções legislativas ou de algum tipo de atribuições e ramos judiciais, a proscrição e exclusão de certos partidos políticos do jogo institucional ou a proibição de funcionamento legal de algumas organizações sociais, o controle e disciplinamento repressivo de determinados movimentos políticos e/ou sociais, etc. No que se refere à arbitragem do processo político, a intervenção pode implicar ações de prevenção perante atores e orientações consideradas "disfuncionais" às condições políticas impostas e/ou ações de restituição em caso de conflitos que tendam a desestabilizar esse conjunto de condições.
Deste modo, a intervenção tutelar se dá no quadro de relações cívico-militares nas que as Forças Armadas, se bem que não constituem o ator unilateralmente determinante da dinâmica política, certamente sua projeção político-institucional configura a instância dominante e principal do jogo político. Por esta razão, este tipo de intervenção supõe um alto grau de autonomia política militar e estrutura-se em torno à defesa de um amplo espectro de prerrogativas institucionais que não se limitam a questões castrenses, mas que se ampliam às esferas centrais do processo político.
A intervenção conservativa implica, por sua parte, uma forma de projeção centralmente demarcada à defesa de certas prerrogativas institucionais delimitativas de espaços, instrumentos e prescrições em cujo âmbito as Forças Armadas podem intervir autonomamente e cujas orientações e conteúdos são definidos exclusivamente por elas em forma independente respeito do poder governamental e da sociedade política em geral. Ao contrário do tipo de intervenção tutelar, tais prerrogativas não se referem nem condicionam -muito menos, determinam- o funcionamento e a organização do processo político em geral, mas estão limitadas àqueles aspectos diretamente ligados à vida institucional das Forças Armadas e a seu acomodamento dentro do ordenamento político em processo de democratização, tais como o papel e as funções militares, a estrutura orgânico-funcional e doutrinal das instituições armadas, a verba de orçamento destinada a sua área de gravitação, os planos de desenvolvimento científico-tecnológico vinculados à segurança externa, a revisão do passado autoritário, a justiça militar, etc.
Este tipo de intervenção pode se efetivar através de ações políticas tais como o questionamento, a pressão, o veto e/ou a influência sobre as autoridades governamentais. O governo civil constitui, neste caso e a diferença da intervenção tutelar, a instância dominante e principal do jogo político. Aqui, os fardados, se bem que conservam alguma capacidade política autônoma, esta apenas serve-lhes como baseamento para perpetuar a conservação de espaços institucionalmente delimitados e restringidos, o que, por sua vez, presta conta de um nível baixo de militarização das relações cívico-militares, se é comparada com a modalidade de intervenção tutelar.
Em suma, enquanto a intervenção tutelar supõe e engloba um tipo de projeção castrense localizada no nível do sistema político em geral e montada sobre um impulso ofensivo de participação político-institucional, a intervenção conservativa se restringe ao âmbito da vida institucional das Forças Armadas e de seu acomodamento dentro do Estado e só implica um impulso efetivo de participação política.
A outra sub-modadlidade de dualismo cívico-militar, à que chamarei de acomodamento civil deficiente, se produz e se articula ao redor dos defeitos e as insuficiências do governo político civil no exercício da condução político-institucional sobre as Forças Armadas. Tal como já se assinalou, esta ineficiência e/ou incapacidade podem resultar de três fatores: a) a falta de uma firme vontade de condução para a efetivação de um exercício competente do mando, já seja por indiferença perante a questão castrense, por apreciar inoportuno tal exercício ou por considerar desnecessário um esforço dessa magnitude; b) a carência dos conhecimentos profissionais necessários e apropriados para a elaboração e implementação de políticas e iniciativas referidas a questões de alta complexidade institucional, o que pode resultar de uma repetida falta de preparação técnico-profissional nessa área e/ou pela inacessibilidade a esses conhecimentos; c) a incompetência instrumental ou incapacidade operativa para implementar as políticas ou iniciativas decididas e formuladas, já seja pela realização de um diagnóstico inapropriado da problemática a resolver e/ou das condições e circunstâncias políticas e econômicas que servem de contexto, pela desproporção, inadequação ou anacronismo das políticas ou iniciativas a implementar para processar tal problemática ou por uma marcada imperícia e incapacidade na implementação ou posta em prática da mesma.
Este leque de possibilidades certamente dá lugar a uma situação de dualismo cívico-militar pela via das deficiências da dirigência civil em geral e dos atores governamentais em particular. Detalhando, pode acontecer que a dirigência civil e governamental tenha a vontade de mando, a capacidade técnico-profissional e a competência operativo-instrumental necessárias para materializar eficientemente a condução político-institucional sobre as Forças Armadas e que isso não aconteça devido às resistências interpostas com sucesso por um poder militar que detenta certa capacidade -tutelar ou conservativa- de projeção política autônoma. Nesta situação, a capacidade política e a destreza institucional da dirigência civil se expressa em sua competência e celeridade para interpretar corretamente a correlação de forças cívico-militares existente e as condições de situação políticas presentes e futuras em função de desenvolver as ações apropriadas com o fim de "ocupar paulatinamente os espaços possíveis" perante os desafios impostos pela necessidade de obter o controle civil.
Por sua parte, a ausência de margens de projeção política autônoma de parte dos militares e/ou a existência de, ao menos, um mínimo de vontade de obediência militar ao poder governamental, por si mesmos não supõem nem derivam necessariamente na estruturação efetiva do controle civil sobre as Forças Armadas. Uma situação como essa indicaria que mal existe uma das condições necessárias para o controle civil -isto é, a vontade de obediência militar-, mas tal controle, como já se disse, requer também para sua concreção do exercício efetivo da condução político-institucional sobre as organizações castrenses de parte das autoridades governamentais. De outro modo, só tem controle civil quando convergem ambas condições.
Em contrapartida, se produz uma situação de dualismo cívico-militar quando não convergem conjuntamente nenhuma dessas condições ou quando não se desenvolve parcialmente alguma delas,83 dando lugar, nesses casos, a três situações possíveis: a) uma situação na que se combina acomodamento militar autônomo e acomodamento civil deficiente; b) uma situação na que existe acomodamento militar autônomo perante uma dirigência civil governamental com competência para o exercício eficiente da condução político-institucional das Forças Armadas; e c) uma situação na que existe acomodamento civil deficiente perante as Forças Armadas voltadas voluntariamente à subordinação político-institucional com relação ao poder político.
Vale dizer que quando existem condições de autonomia política castrense ao redor dos quais os militares intervêm no processo político, já seja em forma tutelar ou conservativa, não tem possibilidade de controle civil, ainda supondo a existência de atores governamentais que contem com uma clara vontade política, com capacidade técnico-profissional e com competência operativa para desenvolver políticas orientadas a exercer esse controle. Do mesmo modo, a ausência de acomodamento militar autônomo e/ou a existência de vontade castrense de subordinação político-institucional ao poder governamental, não dão lugar, por si mesmas, a uma situação de controle civil se, ao mesmo tempo, essas situações supõem alguma forma de acomodamento civil deficiente. Em um caso, não tem controle por excesso militar e, no outro, não o tem por déficit civil.
2. SAIN, Marcelo Fabián, Democracia y Democratización. Actores, condiciones históricas y redefinición teórico-conceptual, Universidad Nacional de Quilmes (UNQui), Bernal, Cuadernos de Investigación, nro. 1, octubre,1996, pp. 34-35.
3. Para a conceituação de regime político como regras de procedimento e como condutas habitudunárias, veja se MUNCK, Gerardo, "La Desagregación del régimen político: problemas conceptuales en el estudio de la democratización". En revista Ágora, Buenos Aires, nro. 5, invierno de 1996.
4. Para uma conceituação geral de regimes autoritários, veja-se a clássica definição de Juan Linz em: LINZ, Juan, "Regimes autoritários", em PINHEIRO, Paulo Sérgio (org.), O estado autoritário e movimentos populares, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1980.
5. Veja-se O'DONNELL, Guillermo e SCHMITTER, Philippe (comps.), Transiciones desde un gobierno autoritario/4. Conclusiones tentativas sobre democracias inciertas, Paidós, Barcelona, 1994.
6. GIDDENS, Anthony, Las nuevas reglas del método sociológico. Crítica positiva de las sociologías interpretativas, Amorrortu Editores, Buenos Aires, 1987; GIDDENS, Anthony, La constitución de la sociedad. Bases para una teoría de la estructuración, Amorrortu Editores, Buenos Aires, 1995. Veja-se também: BERGER, Peter e LUCKMANN, Thomas, La construcción social de la realidad, Amorrortu Editores, Buenos Aires, 1990.
7. Empregará se o conceito ator ou agente para designar todo protagonista de uma interação social e política, seja que se trate de um sujeito individual, seja de um sujeito coletivo.
8. BERGER, Peter e LUCKMANN, Thomas, La construcción social... , op. cit.., p.74 e ss.
9. GIDDENS, Anthony, La constitución de la... , op. cit.., caps. 1, 4 e 5.
10. Ibid., p. 51.
11. SCHUTZ, Alfred, Estudios sobre teoría social, Amorrortu editores, Buenos Aires, 1974, parte I. Veja-se também: SCHUTZ, Alfred e LUCKMANN, Thomas, La estructura del mundo de la vida, Amorrortu editores, Buenos Aires, 1977.
12. GIDDENS, Anthony, La constitución de la... , op. cit.., caps.1 e 2.
13. Ibid.
14. GIDDENS, Anthony, Las nuevas reglas... , op. cit.., p. 104 e ss.
15. As noções de estruturação, estrutura, regras e recursos são tomadas de : GIDDENS, Anthony, La constitución de la ... , op. cit., cap. 1.
16. Ibid., p.57, 58.
17. BERGER, Peter e LUCKMANN, Thomas, La construcción social... , op. cit., p.76.
18. Ibid., p. 80.
19. Ibid., p. 81.
20. GIDDENS, Anthony, La Constitución de la ..., op. cit., p. 210.
21. BERGER, Peter e LUCKMANN, Thomas, La Construcción social... , op. cit., p. 83.
22. GIDDENS, Anthony, La Constitución de la ... , op. cit., cap. 1.
23. Ibid.
24. Ibid., p. 207.
25. Ibid., p. 208.
26. Ibid., 201.
27. Ibid., cap. 3.
28. DOBRY, Michel, Sociología de las crisis políticas. La dinámica de las movilizaciones multisectoriales, CIS-Siglo Veintiuno, Madrid, 1988, p. 87.
29. GIDDENS, Anthony, La constitución de la ... ,op. cit., p. 195.
30. GIDDENS, Anthony, Las nuevas reglas... , op. cit., cap. 3.
31. GIDDENS, Anthony, La constitución de la ... , op. cit., cap. 1.
32. Ibid., cap. 5.
33. LAGROYE, Jacques, Sociología Política, Fondo de Cultura Económica, Buenos Aires, 1991, pp. 170, 171.
34. Ibid., p. 175.
35. WEBER, Max, "La política como vocación",em El político y el científico, Alianza Editorial, Madrid, 1991, p. 82.
36. Ibid., p. 84.
37. Esta definição se baseia na conceituação weberiana do Estado. Veja-se: WEBER, Max, Economía y Sociedad. Esbozo de sociología comprensiva, Fondo de Cultura Económica, Buenos Aires, 1922, caps. I y IX. Veja-se também: GIDDENS, Anthony, "Nation-states and Violence", em GIDDENS, Anthony, Social Theory and Modern Sociology, Stanford University, Stanford, 1987.
38. LAGROYE, Jacques, Sociología... , op. cit., pp. 104, 105.
39. Ibid., p. 105.
40. Ibid., p. 111.
41. Com o termo governantes -ou indistintamente, atores governamentais- fazemos referência às autoridades legalmente habilitadas e encarregadas de tomar -ou participar na toma de - decisões políticas no quadro do processo governamental de formulação, implementação e controle das iniciativas, normas ou políticas públicas, seja no área executiva ou legislativa; e com os termos funcionários públicos designo os agentes de executar tais decisões.
42. MENY, Ives e THOENIG, Jean-Claude, Las políticas públicas, Ariel, Barcelona, 1992.
43. LAGROYE, Jacques, Sociologia... , op. cit.
44. Aos efeitos da análise das condições e dinâmica do controle civil sobre as Forças Armadas, resulta importante ressaltar que, em determinadas oportunidades, geram-se situações políticas ou sociais que são propícias e vantajosas para levar a cabo iniciativas ou políticas públicas com a intenção de modificar, melhorar ou criar condições favoráveis a certos perfis e interesses, sem que ditas situações hajam derivado do surgimento de problemas, conflitos e demandas que requeiram ser tratadas governamentalmente. Trataria-se de situações e processos que se não são objeto de ações públicas, não provocariam o surgimento de problemas, conflitos ou fatos social e institucionalmente desestabilizantes.
45. A distinção e desenvolvimento destas fases derivam de uma adaptação do esquema do "processo de atividades governamentais" desenvolvido por Charles Jones e citado em MENY, Ives y THOENIG, Jean-Claude, Las políticas... , op. cit., pp. 104-107.
46. MENY, Ives y THOENIG, Jean-Claude, Las políticas.. , op. cit., p. 103.
47. LAGROYE, Jacques, Sociología... , op. cit., p. 459.
48. Ibid., p. 465.
49. HUNTINGTON, Samuel, El soldado y el Estado. Teoría y política de las relaciones cívico-militares, GEL, Buenos Aires, 1995.
50. Ibid., p. 15.
51. Ibid., p. 93.
52. Ibid., p. 94.
53. Ibid., pp. 81 y 82.
54. Ibid., p. 83.
55. Já foram empreendidas algumas revisões críticas do conceito huntingtoniano de relações cívico-militares e de profissão militar à luz da experiência histórica da América Latina. Aqui seguiremos alguns dos lineamentos desenvolvidos nessa bibliografia. Veja-se: FITCH, Samuel, Profesionalismo militar, seguridad nacional e democracia: enseñanzas de la experiencia latinoamericana, ponencia presentada en el Taller Internacional sobre "Relaciones Cívico-militares y Políticas de Seguridad Nacional en Corea: Perspectivas Comparativas", Seúl, Corea, 5-6 de agosto de 1989; RIAL, Juan, Los intereses de las Fuerzas Armadas de América Latina en sostener regímenes democráticos, en GOODMAN, Louis, MENDELSON, Johana y RIAL, Juan (comps.), Los militares y la democracia. El futuro de las relaciones cívico-militares en América Latina, PEITHO, Montevideo, 1990; COSSE, Gustavo, Notas para la discusión acerca de la profesión y la intervención militar en América Latina, FLACSO, Buenos Aires, Documento de Trabajo Nro. 109, 1991; LÓPEZ, Ernesto, Ni la ceniza ni la gloria. Actores, sistema político y cuestión militar en los años de Alfonsín, Editorial Universidad Nacional de Quilmes, Bernal, 1994.
56. Veja-se: ABRAHAMSSON, Bengt, Military Professionalism and Political Power, SAGE, Beverly Hills, 1972.
57. Para estes aspectos, veja-se: Ibid.., cap. 3.
58. Estes elementos são apontados por Gustavo Cosse como indicadores de profissionalidade militar; COSSE, Gustavo, Notas para la discusión... , op. cit.
59. Em um sentido geral, a sociedade política engloba o conjunto de organizações partidárias e todos aqueles atores que intervêm diretamente no processo político e a sociedade civil, o conjunto de agrupamentos sociais que vão desde as corporações empresariais e as organizações sindicais até associações bairristas, de gênero, religiosas, ecologistas, de direitos humanos, etc.
60. O conceito dirigência política faz alusão tanto aos atores governamentais quanto à dirigência partidária e social de um sistema político.
61. FITCH, Samuel, "Hacia um modelo democrático en las relaciones cívico-militares para América Latina", en AAVV, Democracia y Fuerzas Armadas, CORDES, Quito, 1989, p.282.
62. Aliás, é Ernesto López quem empreende uma interessante abordagem sobre esta temática afirmando que o núcleo do controle civil nas relações cívico-militares está dado pelas questões de quem manda e sobre que atividades, em: LÓPEZ, Ernesto, Ni la ceniza... , op. cit., pp. 131-133. Aqui continuaremos esta abordagem só no referente à dimensão quem manda e a faremos extensiva a situações onde existe ausência de controle civil sobre os fardados, seja no quadro de um regime formalmente democrático ou de um regime militar-autoritário.
63. Esta última esfera engloba aquelas dimensões da vida pública que não estão referidas diretamente ao papel institucional, à estrutura orgânico-funcional ou ao esquema de condução das Forças Armadas, mas que, direta ou indiretamente, referem se à vida institucional destas instituições e que tem surgido como conseqüência de seu desenvolvimento burocrático-profissioanl ou de problemáticas e conflitos político-institucionais iniciados no interior de sua organização ou em sua relação com as autoridades constitucionais, tais como, por exemplo, as revisões judiciais dos delitos cometidos durante a repressão autoritária que precedeu os processos de democratização na maioria dos países da região, as questões derivadas da intervenção castrense em assuntos de segurança interna -terrorismo, narcotráfico, etc.-, os levantamentos "carapintada" e o enfrentamento político-militar que lhe deu contexto na Argentina entre os anos 1987 e 1990, etc.
64. A política militar constitui a política pública através da qual os atores governamentais fixam os parâmetros institucionais e administram regularmente o referido às instituições militares do Estado não só o atinente a suas tarefas e missões específicas, a sua estrutura orgânico-funcional e aos canais e organismos de condução, mas também a todas aquelas áreas ou esferas de atividades que suponham o desenvolvimento ou intervenção institucional das Forças Armadas.
65. Com o termo ator civil-governamental se faz referência às autoridades constitutivas do poder executivo que tem sob sua responsabilidade a condução orgânico-funcional das Forças Armadas e aos membros do poder legislativo sobre os que recai a responsabilidade da sanção da legislação referente às questões castrense e da defessa nacional e as funções de contralor parlamentário sobre estas temáticas.
66. FITCH, Samuel, "Hacia un modelo democrático...", op. cit., p. 305.
67. LÓPEZ, Ernesto, Ni la ceniza... , op. cit.
68. Ibid., p. 26.
69. Ibid., pp. 26 e 27.
70. Veja-se: Ibid..
71. WEBER, Max, Economía y ... , op. cit., p. 40.
72. Para esta distinção entre autonomia política das Forças Armadas e autonomia profissional das mesmas, veja-se: OLIVEIRA, Eliézer Rizzo de, De Geisel a Collor. Forças Armadas, transição e democracia, Papirus, Campinas, 1994, p. 100; PION-BERLIN, David, "Autonomia militar y democracias emergentes en América del Sur", en LÓPEZ, Ernesto e PION-BERLIN, David, Democracia y cuestión militar, Editorial Universidad Nacional de Quilmes, Bernal, 1996.
73. PION-BERLIN, David, "Autonomía militar...", Ibid., pp. 16, 17.
74. Ibid., p. 17.
75. Em um sentido geral, aqui seguimos uma conceituação e interpretação sobre a autonomia política castrense próxima à de Augusto Varas. Veja-se: VARAS, Augusto, "Relaciones cívico militares y el control civil de las Fuerzas Armadas" exposição apresentada no Seminário "Civil Military Relations and Democracy in Latin America" , Panamá, Ciidad de Panamá, 17-18 de dezembro de 1987; VARAS, Augusto, La política de las armas en América Latina, FLACSO, Santiago de Chile, 1988, cap. 3.
76. Este tipo de regime militar é coincidente com o "modelo moderador" de relações cívico-militares conceituado por Alfred Stepan em: STEPAN, Alfred, Brasil: los militares y la política, Amorrortu editores, Buenos Aires, 1972.
77. A esta modalidade de regimes militares, Guillermo O'Donnell denominou-a de "burocrático-autoritária". Em várias de suas obras, este autor empreendeu uma profunda abordagem teórica e histórica acerca das condições de emergência, consolidação e desarticulação das mesmas. Veja-se: O'DONNELL, Guillermo, "Modernización y golpes militares", en Desarrollo Económico. Revista de Ciencias Sociales, Buenos Aires, nro. 47, dezembro de 1971; O'DONNELL, Guillermo, Modernización y autoritarismo, Paidós, Buenos Aires, 1972; O'DONNELL, Guillermo, "Reflexiones sobre las tendencias generales de cambio en el estado burocrático-autoritario", en Revista Mexicana de Sociología, México, nro. 1, janeiro-março de 1977; O'DONNELL, Guillermo, "Notas para el estudio de procesos de democratización política a partir del estado burocrático-autoritario", en Desarrollo Económico. Revista de Ciencias Sociales, Buenos Aires, nro. 86, julho-setembro de 1982. Para um excelente trabalho sobre a participação das Forças Armadas nos regimes burocrático-autoritários, veja-se: O'DONNELL, Guillermo, "Las Fuerzas Armadas y el estado autoritario del Cono Sur de América Latina", em LECHNER, Norberto (comp.), Estado y política en América Latina, Siglo XXI editores, México, 1982. Para analisar este tipo de dominação castrense, veja-se também: CARDOSO, Fernando Henrique, Autoritarismo e democratização, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1975.; COLLIER, David (comp.), Los nuevos autoritarismos en América Latina, Fondo de Cultura Económica, México, 1982; GARRETÓN, Manuel, "Proyecto, trayectoria y fracaso en las dictaduras del Cono Sur. Un balance", em CHERESKY, Isidoro y CHONCHOL, Jacques (comps.), Crisis y transformación de los regímenes autoritarios, EUDEBA, Buenos Aires, 1985.
78. STEPAN, Alfred, "The New Professionalism of Internal Warfare and Military Role Expansion", em LOWENTHAL, Abraham (ed.), Armies and Politics in Latin American, Holmes & Meier Publishers Inc., New York, 1976.
79. Augusto Varas, no contexto de uma conceituação próxima à que se seguirá aqui, utiliza o conceito "ajuste ou acomodamento autônomo" para se referir a este tipo de relações cívico-militares. Veja-se: VARAS, Augusto, "Las relaciones cívico-militares en un marco democrático", em GOODMAN, Louis, MENDELSON, Johana e RIAL, Juan (comps.), Los militares y la democracia... , op. cit.
80. STEPAN, Alfred, Repensando a los militares en política. Cono Sur: un análisis comparado, Planeta, Buenos Aires, 1988, p. 116.
81. Algumas perspectivas interpretam que a autonomia política das Forças Armadas em um contexto formalmente democrático redunda e expressa-se necessária e unicamente em um tipo tutelar de intervenção castrense. Assim, os termos autonomia e tutela passam a ser conceituados praticamente como sinônimos e ambos, ao mesmo tempo, são contrapostos ao controle civil. Veja-se, por exemplo, ZAVERUCHA, Jorge, Rumor de sabres. Tutela militar ou controle civil? Estudos comparativos das transições democráticas no Brasil, na Argentina e na Espanha, Editora Ática, São Paulo, 1994; ZAVERUCHA, Jorge, "Relações civil-militares no primeiro governo de transição brasileira. Uma democracia tutelada", em Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, nro. 26, outubro de 1994. Esta não é a perspectiva que se segue neste trabalho, na medida em que entendemos que a autonomia política castrense também pode se expressar em forma de intervenção não tutelar.
82. A intervenção tutelar -como toda forma de intervenção social- articula-se e expressa-se efetivamente em um conjunto de ações e práticas políticas concretas e não só na mera declamação discursiva de algum militar ou civil em favor de tal tipo de intervenção nem na existência de estatutos legais que instituam normativamente algumas funções ou papéis tutelares aos fardados. Isto é, nem um discurso nem um instrumento legal definem nem estruturam por si mesmos uma prática social.
83. Desde que se interpretasse que uma situação de dualismo cívico-militar deriva exclusivamente da capacidade castrense para perpetuar-se como instância tutelar do sistema político ou, ao menos, para efetivar um tipo de intervenção conservativa, estaria-se excluindo o comportamento da classe civil perante a questão castrense como objeto problemático de estudo e de avaliação. Mais ainda, cairia-se nesse déficit analítico partindo do suposto de que tal comportamento nunca foi ou é deficitário, isto é, sempre foi e é eficiente e que só a autonomia castrense é a que vulnera e impede o controle civil. Este, evidentemente, não constitui o ponto de vista teórico-conceitual aqui seguido.