Título: Alfonsín, Menem e as relações cívico-militares. A construção do controle sobre as Forças Armadas na Argentina democrática (1983-1995) - Introdução
INTRODUÇÃO
A presente dissertação aborda e analisa as relações cívico-militares estruturadas durante as gestões de Raúl Alfonsín (1983-1989) e de Carlos Menem (1989-1995), e põe especial ênfase nas orientações e estilos através dos quais a classe política, em geral, e as sucessivas administrações governamentais, em particular, atenderam e protagonizaram as mencionadas relações, assim como também nos resultados atingidos e os efeitos produzidos por suas intervenções com relação ao principal desafio que se impôs durante o período e que esteve dado pela construção do controle civil sobre as Forças Armadas.
Para levar conta destas questões se analisarão duas dimensões básicas das relações cívico-militares desenroladas durante os governos de Alfonsín e Menem; a saber, (i) a revisão do passado autoritário, isto é, a revisão da atuação política das Forças Armadas ao longo da ditadura precedente e, em especial, das violações aos direitos humanos cometidas no contexto da denominada "luta contra a subversão"; e (ii) a reinstitucionalização das Forças Armadas no atinente a seu papel institucional, sua estrutura orgânico-funcional e os conflitos políticos e institucionais por elas protagonizados.
Se bem que as relações cívico-militares em um contexto democrático e, especificamente, o controle sobre as Forças Armadas, implicam em um sentido típico-ideal tanto a subordinação dos militares às autoridades governamentais quanto o exercício integral e efetivo de parte destas sobre as Forças Armadas, em um processo de democratização -como o que será analisado neste trabalho-, o foco de atenção analítica estarão centrado sobre as orientações e atuações levadas a cabo pelos dirigentes e funcionários públicos encarregados do governo do Estado e da classe política em conjunto, isto é, sobre o comportamento daqueles nos quais recaem as responsabilidades constitucionais e administrativas do exercício direto do governo, especificamente, os componentes do poder executivo e, em menor medida, os do poder legislativo.
Nos processos de democratização abertos a partir da saída de experiências ditatoriais, o desempheño das elites governamentais e da dirigência política com relação à problemática militar têm representado um papel fundamental no desenvolvimento desses mesmos processos. Ainda mais no caso argentino, no qual a transição para a democracia derivou do "colapso" da ditadura militar do "Proceso de Reorganización Nacional" (PRN), em cujo contexto os governantes militares, depois do estrondoso fracasso político e econômico do regime e da derrota na guerra de Malvinas, não puderam controlar o processo político transicional e não tiveram capacidade para impor condicionamentos severos ao processo político futuro. Em conseqüência, a partir da instauração da democracia, a margem de manobra da classe política civil argentina e as oportunidades abertas a favor do sucesso na consolidação democrática e, particularmente, na construção de controle civil sobre as Forças Armadas, foram relativamente mais amplas que naquelas experiências regionais -como a brasileira ou a chilena- nas que os militares controlaram e dirigiram os respetivos processos de abertura e democratização.1
Por sua parte, a influência da classe política sobre a vida institucional argentina e sobre as relações cívico-militares por ela protagonizada durante os anos de 1983 e1995 não foi o resultado somente das orientações, interesses, objetivos, perspectivas e ações mantidas e levadas a cabo pelos dirigentes e funcionários públicos. De alguma maneira, tal influência tem estado condicionada pelas características e fatores que conformaram o contexto político, econômico e social no qual tiveram que se projetar. Com efeito, no fim da década passada e no início desta, as profundas transformações produzidas tanto no âmbito internacional quanto no sistema político e econômico-social local deram lugar à emergência de uma nova configuração de poder e de uma nova trama de relações no cenário mundial e regional, e deram as condições para o gradual surgimento de uma nova matriz política, econômica e social no âmbito doméstico. Estes processos condicionaram, de diferente maneira e com distinta magnitude, a dinâmica política desenrolada no cenário histórico da democratização iniciada em 1983. Contudo, o grau de condicionalidade -isto é, o grau de constrangimento e/ou de facilitação- que esses fatores tiveram sobre as possibilidades e projeções dos atores políticos e, especificamente, sobre as relações cívico-militares que se foram articulando nesse contexto, foi variado e diversificado. Mas, em grande medida, tal condicionalidade esteve mediada e/ou determinada tanto pela forma e a pertinência através da quais aqueles fatores situacionais foram conhecidos, diagnosticados e compreendidos por parte dos atores quanto também pelos estilos e a capacidade mediante a qual esses atores abordaram, processaram e agiram sobre as mesmas. Isto significa que a incidência dos fatores situacionais, ou seja, das condições políticas, sociais e econômicas, tanto internacionais quanto domésticas, sobre o desenvolvimento do processo político analisado tem estado mediado pelo comportamento e desempenho da classe política e, em particular, pelo das elites governamentais que estiveram encarregadas de definir a agenda política e de formular, sancionar e implementar as políticas públicas referidas à revisão do passado e à reinstitucionalização das Forças Armadas, e de fazer frente aos conflitos e problemáticas surgidas a respeito disso.
As orientações, estilos e a capacidade de gestão e de manobra política da dirigência política durante os governos de Alfonsín e Menem, assim como os resultados da ação desenrolada com respeito a isto pela mencionada dirigência, foram diferentes e mudáveis. Os sucessos conviveram com os fracassos, o consenso com o conflito, a convergência com a divergência, a ineficiência com a eficiência, o pragmatismo com o principismo e a convicção com a responsabilidade. Porém, o selo que imprimiu o dempenho civil e governamental à construção do controle civil foi relevante. O legado sócio-político, as circunstâncias históricas e o conjunto das relações de poder que se foram tecendo ao longo desses anos e, dentre elas, as relações cívico-militares, foram, de algum modo, "filtradas" pelas orientações, preferências e interesses dos governantes, funcionários públicos e dirigentes políticos, por seus cálculos, seus comportamentos e, certamente, suas projeções. Isto presta conta do papel ativo que tiveram as elites governamentais e políticas neste processo.
Este reconhecimento não minimiza a influência que exerceram os fatores políticos, institucionais e econômicos já mencionados sobre as projeções dessas elites nem deve permitir a consideração de que as relações cívico-militares desenvolvidas nesse contexto estiveram exclusivamente determinadas pelas preferências e a vontade política daquelas. O enfoque adotado aqui tenta sopesar historicamente o desempenho situado e condicionado da classe política no processo analisado. O contexto social e político no que se situaram e atuaram historicamente os agentes que protagonizaram as relações cívico-militares que analisarei esteve conformado por práticas e interações estruturadas regularmente em uma dimensão espaço-temporal mais estendida que aquela correspondente à cotidianidade da vida social e política desses atores. Mas foram estes agentes os que produziram e reproduziram, de alguma maneira, através de suas práticas e interações, de seus interesses e preferências, de suas orientações e interpretações, as características e tendências do sistema político e social em geral e das relações cívico-militares em particular. Vale dizer que em todo processo histórico, o comportamento e as interações protagonizadas pelos atores -em nosso caso, pelos atores civis e militares- e as condições e propriedades situacionais dos sistemas políticos e sociais configuram duas instâncias inter-relacionadas e que se pressupõem mutuamente. Eis aqui, pois, um ponto central do enfoque proposto neste trabalho.
Todo isto, em conseqüência, tenta justificar o ênfase posto tanto no seguimento e análise do desempenho da elite governamental e da dirigência política civil com relação ao desafio da construção do controle civil sobre os fardados quanto nos resultados e efeitos que teve tal desempenho.
Pois bem, continuando estes lineamentos, no capítulo primeiro se desenvolve o marco teórico e conceptual que põe em contexto o presente trabalho e que se assenta sobre a base da definição -teórica e nominal- dos termos "relações cívico-militares" e "controle civil sobre as Forças Armadas" tal como serão utilizados nos capítulos seguintes. No capítulo segundo se analisam os antecedentes históricos do período considerado no trabalho, enfatizando o processo de institucionalização do poder militar como ator político desenrolado entre os anos 1955 e 1983. Nos capítulos terceiro e quarto se desenvolvem e analisam as relações cívico-militares e os fatos produzidos durante a gestão alfonsinista com relação ao processo de "revisão do passado" e à reinstitucionalização das Forças Armadas, respetivamente. Nos capítulos quinto e sexto, se abordam estas mesmas questões mas produzidas durante a gestão menemista. E, por último, no capítulo sétimo, se desenvolvem as considerações finais e as conclusões, avaliando e qualificando comparativamente os diferentes aspectos analisados em todo o trabalho.
Finalizado o presente trabalho, que é o corolário de meus estudos de doutorado, não poderia deixar de efetuar uma série de agradecimentos muito importantes. Em primeiro lugar, devo agradecer ao professor Eliézer Rizzo de Oliveira, quem tem orientado com muita dedicação meus estudos e esta tese e com quem tenho a honra de compartilhar uma profunda amizade. Esse agradecimento é extensivo aos amigos, colegas e professores do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE), ambos da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), em particular, a Suzeley Kalil Mathias, a quem tanto estimo; a Héctor Saint Pierre, por sua amizade; a Mariano Sánchez, também pela sua amizade; e, muito especialmente, ao querido professor Octavio Ianni, por seus ensinamentos, sua integridade pessoal e acadêmica, e sua imensa bondade e entrega para seus alunos. Nestes lugares, junto a estes amigos e colegas, dentre tantos outros, tenho vivido alguns dos momentos mais lindos e enriquecedores da minha vida acadêmica e pessoal.
Também devo agradecer às autoridades, colegas e amigos da Universidad Nacional de Quilmes (UNQ), por ter me respaldado e oferecido o apoio necessário para desenvolver estes estudos de post-graduação, particularmente a seu reitor, o engenheiro Julio Villar; ao Licenciado Mario Greco; ao Doutor Mariano Narodowski e ao Licenciado Pablo Bulcourf, pelo estímulo que me brindaram; e, muito especialmente, ao professor Ernesto López, por sua amizade, por seu permanente apoio e por compartilhar, desde há muito tempo, a atividade de investigação nos temas dos que se ocupa este trabalho e tantos outros.
Do mesmo modo, agradeço aos amigos e colegas Juan Pablo Cafiero e Alejandro Filomeno, quem em todo momento respaldaram minha labor acadêmica e me alentaram tanto no pessoal quanto no profissional. Também agradeço o afeto oferecido por Miriam Regina Silva, pela tia Ida e por Luis Narodowski, aqueles que não estão conosco, mas que quando estiveram, se sentiram.
1. O'DONNELL, Guillermo, SCHMITTER, Phillipe e WHITEHEAD, Laurence (comps.), Transiciones desde un gobierno autoritaario/2.América Latina. Paidós, Barcelona, 1994.