Título: Alfonsín, Menem e as relações cívico-militares. A construção do controle sobre as Forças Armadas na Argentina democrática (1983-1995) - Capítulo séptimo - A conflitiva construção do controle civil
CAPÍTULO SÉTIMO
A CONFLITIVA CONSTRUÇÃO DO CONTROLE CIVIL
7.1) 1983, novas regras do jogo.
O traço distintivo que caracterizou o processo político argentino desenrolado entre 1955 e 1983 foi a crescente e ampla institucionalização do poder militar enquanto ator político. Neste contexto, as Forças Armadas foram se convertendo em sujeitos de poder altamente corporativistas e com amplas margens de autonomia institucional no interior do sistema político. Isto não só se vinculou à repetida intenção militar de se consolidar como ator tutelar do cenário político, mas também, e particularmente, à debilidade e fraqueza da liderança civil democrática, que aceitou, alentou e consolidou esse papel como necessário e legitimo. Isto é, a politização de todo o militar teve como contracara a militarização da política. Por isso, o militarismo não foi uma conseqüência exclusiva do comportamento político dos fardados, mas, em grande medida, foi o resultado das limitações e do comportamento concessivo de grande parte da dirigência política civil. E não apenas porque justificou o intervencionismo político militar, mas também porque permanentemente procurou vantagens tanto na exclusão de seus adversários políticos quanto na emergência de formas de dominação militarmente sustentadas.
Para continuar, se entre 1955 e 1982, as relações cívico-militares estiveram determinadas pelas condições e parâmetros estabelecidos pela frente cívico-militar que derrocou o governo de Perón, a partir do colapso do PRN esse cenário redefiniu-se substancialmente. A profunda reconversão econômico-social levada a cabo pelo regime militar desestruturou a matriz social e política que convertia os setores populares e a classe operária em um ator fundamental dentro do sistema político local e, com isso, se desarticularam os fundamentos de sustentação do peronismo como a mais importante força político-social desse cenário. Esta situação, somada à quebra do poder militar produzida no mesmo tempo que o colapso do regime do processo, permitiu a desarticulação da condição de exclusão e proscrição do peronismo como parâmetro central do cenário político local, ao mesmo tempo que supôs a ruptura da projeção militar como agente dessa exclusão e, ainda mais, como sujeito de poder institucionalmente autônomo. O ano 1983, em suma, significou a quebra da lógica política inaugurada em 1955 e, em seu conjunto, do tipo de relações cívico-militares que se correspondia com essa lógica.
Esta quebra, além disso, foi consolidada por outro fato importante, a saber, as eleições presidenciais de 1983 porque foram os primeiros comícios nacionais, desde os anos '50, nos quais não houve proscrições nem condicionamentos tutelares de parte das Forças Armadas e nos que resultou triunfador um candidato não pertencente ao peronismo. Em definitiva, e assim como se disse, este fato supôs a institucionalização de um novo consenso político caracterizado pela inexistência de condições de exclusão e/ou proscrição de algum setor político ou social, a ausência de tutela militar e a reivindicação coletiva do sistema democrático como ordem política legítima de parte de todo o espectro político e social nacional.
7.2) Os militares e a ruptura da autonomia.
O processo de democratização iniciado em 1983 permitiu a aparição de novas tendências e a um novo tipo de relações cívico-militares. Com relação às Forças Armadas, pôde se observar que, desde esse momento, sofreram os impactos das novas condições sócio-políticas e, particularmente, das profundas mudanças que se produziram no interior de sua própria organização. O fracasso do PRN, as seqüelas da denominada luta contra a subversão e, em particular, a derrota de Malvinas as colocaram na mais funda crise institucional produzida em toda sua existência. As deformações orgânicas, funcionais e doutrinais que sobre elas pesavam como conseqüência destes fatos, não demoraram em se manifestar abertamente. Os impulsos corporativos que as cúpulas militares tentaram conservar com a intenção de preservar certas prerrogativas institucionais e de se projetar, na medida do possível, como atores autônomos no nova ordem democrática, foram neutralizados pela profunda crise de identidade e de protagonismo político que estourou nos quartéis com o colapso da ditadura.
Assim, da pauta de comportamento militar ofensivo e desestabilizante que tinha prevalecido durante 50 anos, passou-se a um padrão defensivo, baseado em uma ação interna e burocrática, no que as Forças Armadas começaram a desempenhar, antes bem, um papel secundário e subordinado dentro da trama de poder que se abriu a partir de dezembro de 1983. Tratou-se, com certeza, da conformação de uma nova modalidade de relações cívico-militares, nas que as Forças Armadas deixaram de constituir um ator político com capacidade de exercício de poder estatal através da montagem de um regime autoritário sustentado por elas ou com possibilidade de tutelar, de alguma maneira, o sistema político ou, pelo menos, de desenrolar ações desestabilizadoras da ordem institucional democrática. Pelo contrário, desde aquele momento, as Forças Armadas passaram a constituir um ator do interior do Estado, cuja inserção no âmbito institucional se começou a manifestar mediante o exercício combinado de algum grau de influência sobre o circuito governamental através de posicionamentos pessoais, propostas e, no máximo, mediante o exercício de pressões ou a formulação de questionamentos frente ao poder civil, mas sem que essas iniciativas tenham podido se traduzir em modalidades tutelares de projeção política. Isso nem sequer aconteceu em todo o referido à revisão do passado, questão que, na verdade, foi a única na que os distintos setores militares tinham encontrado um chão discursivo e institucional comum, assim como também não com relação à brusca queda orçamentária que suas instituições sofreram durante todos esses anos e que também tinha constituído um sério problema comum. Vale dizer, nem sequer detrás do objetivo unificador de neutralizar todo tipo de revisão judicial do passado, de encontrar uma saída política -anistia ou indulto- aos processamentos ou condenas produzidos ou de reivindicar a ação militar na luta contra a subversão ou, mais recentemente, de pôr um limite ao drástico ajustamento e recorte orçamentário que sofreram suas instituições, os fardados conseguiram articular um tipo de intervenção conservativa em favor da preservação de certas prerrogativas institucionais que lhe tivessem permitido ter sucesso em algumas destas metas. Ainda nos momentos em que a pressão militar sobre o poder político alcançou um ponto alto com relação aos juízos, como aconteceu no fim de 1986 e durante os primeiros meses de 1987, as Forças Armadas não puderam criar nem conservar espaços, instrumentos e/ou certa capacidade de ação política que gerassem condições para uma intervenção autônoma no desenvolvimento dos assuntos que concerniam a sua vida institucional ou, pelo menos, a fazê-lo com relativa independência respeito do poder governamental e da sociedade política em general.
Existiram, em troca, certas situações conflitantes que foram resolvidas em um sentido favorável à perspectiva ou aos interesses militares como, por exemplo, as saídas negociadas do primeiro e do terceiro levantamentos carapintada ou as leis de Ponto Final e de Obediência Devida e os indultos mediante os quais se pôs fim à revisão judicial do passado. No entanto, esses fatos parecem ter respondido mais a certas táticas concessivas do poder político que a uma imposição autônoma unilateralmente proposta pelas Forças Armadas. Essas medidas fundaram-se, antes bem, na crença governamental de que a confrontação com os militares tivesse produzido uma situação de desestabilização institucional -primeiro levantamento carapintada-, na imperícia demonstrada na abordagem e tratamento dos fatos -terceiro levantamento carapintada-, na forma de enfrentar o fracasso e a inconsistência com que se encarou o processo de revisão do passado -leis de Ponto Final e de Obediência Devida-, ou no predomínio de uma modalidade pragmática de resolução de uma situação conflitante -os indultos-. Uma clara expressão disso esteve dada pela efusiva reivindicação da ação militar desenrolada durante a luta contra a subversão efetivada por Menem ao longo dos anos 1994 e 1995. Essa reivindicação se produziu em momentos em que a revisão judicial das responsabilidades penais do passado tinha finalizado, as cúpulas militares daquele momento não faziam referência ao tema e o General Balza realizava a autocrítica cujo conteúdo era oposto àquela reivindicação.
Em suma, apesar de que ao longo dos 12 anos analisados se produziram numerosos questionamentos, formas de pressão e modalidades de influência de parte das Forças Armadas, ou de certos chefes, oficiais e/ou setores militares, sobre as autoridades governamentais, durante todo esse período, o governo civil constituiu, de uma ou outra maneira e à diferença do acontecido durante as décadas anteriores, a instância dominante e principal do jogo político. De certo, durante a gestão alfonsinista, a capacidade de articulação de posições unificadas e de exercício de pressão militar sobre o poder político foi substancialmente maior que a existente durante o mandato menemista. Porém, as formas de intervenção militar de maior envergadura , longe de configurar modalidades de ingerência tutelar sobre a vida política, supuseram, antes bem, atitudes e comportamentos de caráter defensivos e só restringidas àquelas questões diretamente vinculadas a sua vida institucional. Todo isso fez, pois, que o eixo de gravitação principal das relações cívico-militares passasse pelos estilos e orientações que guiaram o desempenho da classe política civil, assim como também pelos resultados e efeitos obtidos pela projeção desta perante a problemática militar.
7.3) O desempenho da classe política.
No que concerne à questão militar, em 1983, o governo e a dirigência política em general tinham que enfrentar um duplo desafio. Por um lado, encarar a revisão judicial dos crimes perpetrados durante a repressão ilegal e, por outro lado, reinstitucionalizar as Forças Armadas no processo político democrático. Todo isto devia permitir articular relações cívico-militares marcadas, do lado civil, pelo exercício efetivo do governo sobre as Forças Armadas e, do lado militar, pela subordinação castrense às autoridades governamentais.
Naquele momento, as diferentes manifestações nos meios e os documentos emitidos pelos dirigentes e os partidos políticos afirmavam, quase em uníssono, que o exercício do controle civil democrático sobre os militares era uma condição necessária e indispensável -entre outras- para garantir a estabilidade institucional democrática e que esse controle poderia articular-se somente como resultado da extinção das margens de autonomia e corporativização alcançados pelas Forças Armadas durante a etapa autoritária precedente ou, ao menos, como derivação da existência de poucas prerrogativas institucionais em poder dos fardados dentro da dinâmica democrática. Com certeza, o logro destes objetivos implicaria um longo processo no que se impunham certas metas importantes, tais como a redefinição do papel institucional das Forças Armadas, de suas missões e tarefas específicas; o desenho e implementação de uma reforma ampla das estruturas orgânico-funcionais e doutrinais das instituições militares, objetivando a eliminação das profundas deformações que apresentavam; e, finalmente, a revisão das violações aos direitos humanos cometidas sob o regime militar, demanda esta que estava reafirmada por um amplo consenso social.
A partir destes parâmetros, as relações cívico-militares se apresentavam como um cenário altamente conflitante. Por um lado, as Forças Armadas tentariam resistir e vetar as iniciativas do poder político orientadas a revisar o passado ou a empreender políticas de reforma institucional. Assim o tinham expressado no Documento Final da Junta Militar sobre a Guerra contra a subversão e o terrorismo ou através da lei 22.924 de anistia. E, por outro lado, o poder político se mostrava disposto a levar a cabo medidas que tendessem a redefinir a presença corporativista do poder militar e a anular as margens de autonomia que ainda pareciam manter às instituições militares. Era evidente que o controle civil democrático sobre estas organizações não resultaria da vontade de subordinação dos homens de armas, o que anulava de antemão a possibilidade de uma autodepuração ou auto-reforma viabilizada desde os quartéis pelos próprios fardados. Só a disposição e a capacidade política do governo e da dirigência política em geral constituíam os fatores que poderiam impulsar a implementação das necessárias medidas de reestruturação.
7.3.1) A gestão alfonsinista.
A orientação militar implementada por Raúl Alfonsín objetivou centralmente a preservação da estabilidade institucional democrática, a partir da interpretação de que as tendências corporativas e autônomas dos militares configurariam um sério obstáculo para esse objetivo de fundo porque abririam a possibilidade potencial de retorno ao autoritarismo. Desse modo, o oficialismo adjudicou às Forças Armadas a capacidade suficiente como para produzir ações desestabilizadoras, sem considerar devidamente que, na verdade, a descomposição profissional dessas instituições e a profunda revalorização da democracia de parte da sociedade política e civil local, não só iam em detrimento daquela possibilidade, mas também cerceavam a capacidade militar de projeção tutelar ou ofensiva.
Desde esta focalização, o governo se projetou em direção aos quartéis tentando neutralizar todo fato que pudesse obstaculizar a prezada estabilidade institucional e o fez através de uma política cujo eixo principal passou pela revisão judicial das violações aos direitos humanos, mas sem o devido acompanhamento de iniciativas de reforma das Forças Armadas que objetivaram profissionalizá-las com um traço institucional politicamente democrático e profissionalmente moderno.
Em 1983, o radicalismo, à diferença do PJ, foi o único partido político que contava com lineamentos claramente definidos e formulados acerca de duas questões centrais, isto é, acerca da revisão do passado e da reinstitucionalização das Forças Armadas. Com relação ao primeiro aspecto, Alfonsín e sua equipe tinham optado por uma estratégia de revisão delimitada, baseada tanto na distinção dos diferentes níveis de responsabilidade penal dos fardados que tinham participado na luta contra a subversão quanto no fato de que fossem os tribunais militares os encarregados de viabilizar essa revisão e de produzir, assim, uma sorte de autodepuração castrense. Estes lineamentos foram mantidos pelo governo alfonsinista até o final de seu mandato. E, com relação ao segundo aspecto, a UCR anunciou um plano amplo de reforma militar assentado sobre a promulgação de uma nova lei de Defesa Nacional, a restruturação integral do sistema de direção e mando institucional das Forças Armadas e a reformulação da estrutura orgânico, funcional e doutrinal dessas forças.
Por sua parte, o peronismo, além de não contar com lineamentos uniformes e comuns acerca destes aspectos, estava cruzado por divisões e diferenças internas detrás das quais despontavam visões encontradas e opostas com relação à revisão do passado e às funções que deviam cumprir as Forças Armadas.. Não foram, inclusive, insignificantes os setores do PJ que eram partidários de não revisar os crimes do passado e até de reivindicar esse passado, como também não eram poucos os que consideravam conveniente que as Forças Armadas tivessem certa função tutelar sobre o sistema político ou que, ao menos, conservassem um papel ativo em matéria de segurança interna, assim como se pôde observar durante os tardios debates sobre a lei de Defesa Nacional. Outros setores internos, em troca, tinham certa afinidade ou dividiam visões convergentes com o radicalismo acerca da reinstitucionalização militar, embora as diferenças fossem maiores com relação à revisão do passado.
Pois bem, visto o processo de revisão do passado desenvolvido durante a gestão alfonsinista, a política impulsada e seguida pelo governo a respeito, conforme seus objetivos, resultou um relativo fracasso. Em primeiro lugar, o governo ordenou o julgamento dos membros das três primeiras Juntas Militares do PRN no âmbito do CSFA, mas este não só obstaculizou e/ou demorou sistematicamente os processos abertos em seu seio, mas também reivindicou em numerosas ocasiões a ação das Forças Armadas durante a luta contra a subversão. Isso prestou conta de que nenhuma instância das Forças Armadas estava disposta a julgar a seus camaradas por aquilo que reivindicavam como uma "guerra" necessária e patriótica, com o qual se fechou toda possibilidade de autodepuração militar.
Perante este panorama, o governo mostrou-se disposto a consolidar a labor da justiça federal na revisão do passado. As modificações introduzidas no Código de Justiça Federal, instituindo a apelação e revisão do desempenho ou das condenas da justiça militar por parte da instância civil, assim como a conformação da CONADEP e o respaldo a sua labor, foram uma clara expressão daquilo. No entanto, o governo continuou afirmando a necessidade de restringir e concentrar essa revisão ao processamento e sanção dos membros das Juntas Militares e de alguns outros fardados altamente comprometidos na repressão ilegal, tentando impedir que esse processo abarcasse ao conjunto dos quadros médios das Forças Armadas que formaram parte do esquema repressivo da ditadura e que ainda estavam na ativa. Para isso, tinha estabelecido a distinção dos três níveis de responsabilidade e culpabilidade entre os repressores e esperou que esses critérios foram adotados e impostos pela justiça federal. Mas isto não aconteceu. Quando a justiça federal ordenou a pesquisa e o processamento para todos os fardados implicados nos crimes perpetrados durante o terrorismo de Estado, o esquema oficial se desarticulou, permitindo um duplo jogo de pressões. Do lado militar, se reduplicou a pressão a favor de uma revisão judicial delimitada, isto é, em sintonia com a estratégia inicialmente proposta pelo governo. Porém, do lado civil, a pressão foi em sentido contrário. Durante o processo que se estava promovendo aos ex-comandantes ao longo de 1985, a difusão pública dos pormenores do terrorismo de Estado e da violenta repressão levada a cabo nesse contexto, gerou, contra o objetivo oficial, um forte consenso a favor de uma revisão ampla do passado. O particular da situação oficial esteve dado pelo fato de que o governo radical desejava uma revisão atenuada do passado, mas de frente à sociedade, não queria viabilizá-la através de alguma iniciativa legislativa ou através de algum decreto. Pretendia que isso fosse realizado pelo poder judiciário, mas este, exceto algumas excepções, iniciou uma ampla pesquisa acerca dos fatos do passado e possibilitou o juízo de mais de um milhar de militares que tinham participado na repressão ilegal e que naquele momento se encontravam em atividade. Perante esta situação, e convencido do fracasso da tentativa de colocar um limite a este processo -tentativa da que as instruções ao Promotor Geral das Forças Armadas de abril de 1986 foram uma significativa manifestação-, o governo optou pela alternativa legislativa que culminou com a promulgação, a instâncias do oficialismo, das leis de Ponto Final de a de Obediência Devida, através das quais foram anulados os processos de 1.180 fardados dos 1.200 que naquele momento estavam sendo julgados. Com certeza, os custos políticos que o governo deveu pagar por esta política não foram menores, tal como pôde se apreciar nas eleições legislativas de setembro de 1987.
No que concernia à reinstitucionalização das Forças Armadas, em um primeiro momento, o governo viabilizou uma série de mudanças significativas na estrutura de direção delas, consolidando o ministério de Defesa como a instância básica do poder institucional dessas forças e aos Estados Maiores de cada uma como degrau básico de direção operativa. No entanto, a promulgação da lei 23.554 de Defesa Nacional se produziu quatro anos depois de iniciado o mandato de Alfonsín. A falta de vontade do governo e de seu partido, as frustradas tentativas por estabelecer acordos entre o oficialismo e a oposição, assim como também as contradições existentes no peronismo acerca da defesa nacional e das missões e funções institucionais que deviam ter as Forças Armadas, impediram a rápida promulgação de uma lei que era um instrumento central para reinstitucionalizar às organizações militares dentro do esquema democrático. Essa lei, cuja demora era uma manifestação da indiferença com que a classe política tratou as questões militares, chegou tarde, pois, naquele momento o grau de conflito alcançado entre o oficialismo, a oposição e os militares com relação à revisão do passado era elevado e eclipsava o conjunto das relações cívico-militares.
De todos modos, a lei 23.554 significou um passo fundamental na reformulação conceptual da defesa nacional e, particularmente, na institucionalização das Forças Armadas como instrumento militar daquela. A partir da promulgação dessa lei, as Forças Armadas tiveram a Defesa Nacional como seu principal âmbito de organização e de funcionamento institucional, mas somente em função de participar militarmente do esforço nacional orientado a solucionar os conflitos exclusivamente originados por "agressões de origem externa". Além do mais, nela se estabeleceu uma clara distinção conceptual e institucional entre a defesa nacional e a segurança interna, indicando que para "dilucidar as questões que se referem à defesa nacional" devia se levar permanentemente em conta "a diferença fundamental que separa a defesa nacional da segurança interna" e estabelecendo que a segurança interna devia estar "regida por uma lei especial". Também se estabeleceu a proibição de que os organismos de inteligência das Forças Armadas produziram inteligência em matéria de política interior.
Um aspecto relevante da sanção da lei 23.554 o constituiu o fato de que resultou de um amplo consenso partidário. Com efeito, tratou, se da primeira lei referida à defesa nacional sancionada como produto de um trabalhoso acordo alcançado entre o oficialismo e a oposição, depois de um extenso tramite parlamentário no que não foram poucas as pressões militares para obstaculizá-lo. Isto, também, pôs em evidência que os fardados não contavam com o suficiente poder político como para impor lhe condições às autoridades governamentais parlamentárias quando estas atuavam em forma conjunta e assumindo posições institucionais convergentes em um tema tão importante para a institucionalização democrática.
No entanto, o esforço por desmilitarizar a segurança interior plasmado na lei 23.554 se dissipou quando o governo, depois da ocupação de La Tablada e satisfazendo a posição militar, promulgou os decretos 83/89 e 327/89 através dos quais permitiu-se a intervenção militar para conjurar a ação de grupos terroristas. Alfonsín optou por esta saída em nome da estabilidade institucional. Mas, aquela ocupação não supunha o ressurgimento do fenômeno subversivo na Argentina, nem muito menos. Tratou-se de um fato isolado produzido por um grupo minúsculo e sem ramificações nem inserção política. O que na época, de certo, vulnerava a estabilidade institucional era o desarranjo econômico e social existente desde fazia alguns meses e que mais tarde provocou a saída prematura de Alfonsín do governo. Em conseqüência, aqueles decretos responderam, em verdade, ao impulso concessivo com que Alfonsín atendeu a questão militar durante os cinco anos e meio de sua gestão.
Este estilo de administração também caracterizou o modo mediante o qual o governo abordou e tentou resolver a crise interna do Exército em cujo contexto se produziram as três rebeliões carapintada. Em primeiro lugar, o governo não soube apreciar que os mencionados levantamentos não se circunscreveram à mera reclamação de solução política para os juízos que se estavam fazendo aos militares que tinham cometido crimes durante a repressão ilegal, mas que eram a expressão de uma confrontação entre setores que competiam pela direção da arma e que, além disso tinham visões e estratégias diferentes para obter um objetivo comum que era a rearticulação do protagonismo político do Exército. Em segundo término, o tipo de resolução ensaiado pelo governo deixou aberta e latente essa confrontação na medida que não supôs a desarticulação de um dos setores em conflito e, em particular, não implicou a exclusão institucional do setor rebelde. A negociação com Aldo Rico, através da qual se pôs fim ao primeiro levantamento, as idas e voltas do governo respeito da situação processual deste militar antes da produção do segundo levantamento e o passivo papel representado durante a terceira rebelião e, especificamente, frente ao "pacto militar" que lhe pôs fim, prestaram conta daquilo.
Lineamentos semelhantes guiaram a orientação de Alfonsín quanto à questão da restruturação militar. O projeto de reforma militar do partido triunfante nas eleições de 1983, que durante os primeiros meses do governo tentou viabilizar o ministro Borrás e o titular do EMCO, General Fernández Torres, foi rapidamente, abandonado, depois da morte do primeiro e a saída do cargo do segundo. As reformas que depois se desenrolaram, em particular, o insubstancial impulso de auto-reforma militar, foram parciais e se levaram a cabo em um clima marcado pela oposição militar -originada, principalmente, pela recusa militar aos juízos- e pela falta de firmeza governamental, resultando insuficientes para gerar as mudanças estruturais que se tinham pensado em função de fazer frente à profunda crise profissional pela que atravessavam as Forças Armadas. Esses retoques, em definitiva, não se inseriam em uma política global de restruturação orgânica e funcional das instituições militares. Este déficit também manifestou-se na questão orçamentária. A respeito, o governo produziu uma considerável redução do gasto militar. Em 1983, este gasto significou o 3,47 % do PBI, enquanto em 1984 significou o 2,31 %, em 1985, o 2,30 %, em 1986, o 2,30 %, em 1987, o 2,28 %, e em 1988, o 2,12 %. Além do mais, esse processo se desenvolveu no contexto de uma brusca redução do gasto público e de uma estagnação geral da atividade econômica, o que, em seu conjunto, fez que a referida redução fosse superior ao 50 % em recursos reais. Porém, esta queda do gasto militar não foi acompanhada por iniciativas que objetivassem reorganizar as instituições armadas em função de readaptá-las às necessidades econômicas e orçamentárias do país, o que reforçou a crise militar.
7.3.2) A gestão menemista.
À diferença do acontecido durante o mandato de Alfonsín, no fim dos anos '80, os militares não eram considerados uma ameaça à ordem institucional democrática e era evidente que não se constituíam enquanto atores com capacidade de veto sobre o poder político. Em conseqüência durante a gestão menemista, as Forças Armadas não ocuparam um lugar privilegiado entre as prioridades governamentais. Estas prioridades estiveram centradas na necessidade de conter o colapso econômico desencadeado em meio da feroz hiperinflação que tinha estourado no princípios de 1989, aplicando uma política geral pensada fundamentalmente para voltar funcional o Estado e para gerar as condições de governabilidade que permitissem redefinir os lineamentos gerais da economia local. Para alcançar estes objetivos, entre outras questões, foi central a reformulação do modelo de inserção internacional -mundial e regional- da Argentina.
Neste contexto, a direção política que Menem infringiu à questão militar esteve marcada por duas grandes orientações. Em uma primeira etapa, essa direção se centrou na resolução das duas principais problemáticas abertas durante a gestão alfonsinista e que, em 1989, ainda configuravam questões altamente conflitantes nas relações cívico-militares. A primeira destas problemáticas girava em torno da ainda reclamação militar em favor de uma "solução política" à revisão do passado que beneficiasse aos poucos fardados que ainda estavam processados e aos ex-comandantes do PRN condenados. A outra problemática estava dada pela ativa presença no interior do Exército do setor político carapintada que tinha protagonizado três rebeliões durante o governo radical e que pretendia projetar-se sobre a direção da arma. Por sua parte, em uma segunda etapa, a orientação militar menemista reduziu-se ao desenvolvimento de iniciativas em matéria militar derivadas centralmente do modelo de reconversão econômica e da política de inserção internacional levados a cabo pelo governo, tentando adaptar as instituições armadas e a política militar aos parâmetros centrais da política exterior e às novas condições econômico-orçamentárias vigentes no país.
No que se relacionava com a revisão do passado, o enfoque dado por Menem a esta problemática foi substancialmente diferente do dado por Alfonsín. Para o mandatário peronista, a questão central consistia em alcançar algum tipo de solução às condenas e processos pendentes que comprometiam a membros ativos ou reformados das Forças Armadas, de maneira que essa questão e suas eventuais derivações não supusessem nem gerassem nenhum tipo de conflitos políticos com as instituições militares. Sua intenção era pôr um limite a essa situação e estabelecer, em conseqüência, novos padrões de relacionamento com os fardados. As duas séries de indultos promulgados em 1989 e 1990 respetivamente se inseriram nestes objetivos.
Estas medidas tiveram um duplo efeito sobre o conjunto das relações cívico-militares. Por um lado, significaram o encerramento definitivo da etapa marcada pelos juízos e as problemáticas derivadas da revisão judicial do passado, cujos pormenores tinham ocupado o centro do cenário político durante a gestão anterior. A partir desse momento, tanto a reclamação militar a favor de uma "solução política" aos processos e condenas judiciais pendentes quanto a tácita reivindicação da ação militar no passado autoritário, foram esvaziados de conteúdo e ficaram politicamente superados. Com isso, a revisão do passado deixou de configurar a questão mais conflitante das relações cívico-militares e seu desenrolamento posterior não supôs um cerceamento do controle civil sobre as Forças Armadas ou, especificamente, da subordinação militar aos poderes governamentais. Por outro lado, os indultos simbolizaram tanto para o governo quanto para os fardados em seu conjunto uma expressão concreta da aproximação e convergência entre Menem e as Forças Armadas. Desde esse momento, a administração menemista contou com um elevado grau de controle efetivo sobre as Forças Armadas, o que nunca tinha sido conseguido por Alfonsín.
Quando o tema da repressão ilegal do passado autoritário tornou à cena pública como conseqüência das promoções frustradas dos oficiais da Marinha Rolón e Pernías e das declarações de Scilingo, essa questão teve uma lógica substancialmente diferente à que existia até esse momento. Já não eram os chefes militares os que reclamaram o reconhecimento da ação militar durante a luta contra a subversão mas foi o próprio presidente Menem quem em numerosas ocasiões formulou enfaticamente essa reivindicação e o fez como uma forma de não perder a iniciativa nesse tema e como uma maneira de rebater à oposição. Uma clara expressão disto foi o respaldo que Menem ofereceu ao General Balza quando este criticou e recusou tanto a metodologia ilegal e ilegítima que se tinha utilizado durante a luta contra a subversão quanto a participação militar na política. O conteúdo desta crítica era contrário à reivindicação formulada pelo mandatário, mas este, vendo o efeito positivo que a mensagem de Balza tinha gerado na sociedade, o apoiou efusivamente, ratificando com isso o estilo pragmático com que sempre encarou estes assuntos.
No que concernia à problemática interna do Exército, Menem também encarou tal problemática com o objetivo de terminar com esse enfrentamento e respeitando também uma lógica, certamente, pragmática. Isso se observou quando assumiu a presidência e decidiu designar e manter na direção do Exército a oficiais não pertencentes a nenhum dos setores em conflito, mas àqueles que guardavam um perfil pró-institucional, tais como os Generales Isidro Cáceres, Martín Bonnet e Martín Balza, com o que pretendia limitar a esfera de influência interna do setor rebelde. Desde aquele momento, os carapintada se encontraram diante de uma condução formada por oficiais que respondiam ao perfil que eles próprios tinham reclamado como adequado e necessário para a chefia do Exército. Mas, além disso, por seu caráter pró-institucional, esses chefes recusavam toda forma de insubordinação ou de atos que atentassem contra a hierarquia e a disciplina interna da arma, o que os fazia afirmar posições radicalmente enfrentadas às de todos aqueles grupos ou setores que com suas ações vulneravam a cadeia de mandos e em função disso se propuseram como objetivo principal a exclusão dos carapintada das alas da arma. Neste contexto, se produziu o levantamento do dia 3 de dezembro de 1990, o que, com relações às rebeliões anteriormente produzidas, foi o levantamento mais violento e de maior envergadura, seja pela importância e a quantidade de unidades comprometidas, pelo elevado número de quadros implicados, pelo nível hierárquico de sua direção -todos eles eram Coroneles- ou pela crueldade do enfrentamento desenrolado. Perante o fato de rebelião consumado, Menem não só em nenhum momento se mostrou inclinado a negociar ou concertar acordos com os sublevados, mas aproveitando as novas condições de mando existentes a partir dos indultos e a pertinência na eleição do setor pró-institucional para dirigir a arma, conseguiu acabar com a rebelião através da rendição incondicional dos rebeldes, quem foram encarcerados e imediatamente processados por ordem do poder executivo.
Pois bem, estes sucessos não faziam esquecer que, entre 1989 e 1990, Menem tinha estabelecido fortes vínculos com os carapintada em função de contar com o respaldo de um setor militar que lhe permitisse fazer frente tanto às pressões ensaiadas pelas cúpulas militares durante a última etapa da gestão alfonsinista quanto à crítica situação social. Porém, enquanto esta eventual ameaça desapareceu, o líder peronista, em conjunto com os Generales Cáceres, Bonnet e Balza, desarticulou a presença política dos carapintada dentro do Exército e provocou o afastamento definitivo do líder rebelde e de seus seguidores das alas da arma, objetivo que não tinha se podido alcançar na administração anterior.
Quanto ao papel institucional das Forças Armadas, o caráter de remilitarização da segurança interna que continham as normas promulgadas por Alfonsín na última etapa de seu governo foi consolidada por Carlos Menem quando, aos poucos meses de assumir a presidência, e dando resposta à situação de alto grau de conflito político-social derivada da hiperinflação desencadeada no começo de 1990, promulgou o decreto 392/90 através do qual modificou o decreto 327/89, ampliando os limites de sua competência funcional à prevenção e solução de "fatos que constituíssem um estado de comoção interna". No entanto, em dezembro de 1991, a distinção jurídico-institucional entre defesa nacional e segurança interior foi novamente instituída através da sanção e promulgação da lei 24.059 de Segurança Interna. Enquanto isso, fiel a seu estilo pragmático, foram numerosas as ocasiões nas que o governo menemista proclamou a necessidade de que as Forças Armadas interviessem em assuntos inseridos na segurança interior, sem que mediasse nenhum tipo de pressão castrense a respeito e sempre no contexto da ampla crise social desenrolada na primeira etapa de sua gestão.
Por sua parte, a partir das novas condições que se impuseram no plano internacional, regional e subregional no começo da década do 90 e nas condições geradas pela política econômica e exterior delineada pelo governo, a orientação militar no país não foi mais que uma derivação daqueles parâmetros. O envio de tropas argentinas ao Golfo Pérsico, a desativação do projeto de mísseis Cóndor II e a ativa participação de militares argentinos nas Forças de Paz das Nações Unidas configuraram um claro sinal disso e, particularmente, da necessidade de estabilizar as relações com os Estados Unidos. Porém, este processo não foi o resultado de uma política de defesa e militar desenhada para a reconversão e modernização castrense conforme às novas condições políticas e econômicas existentes tanto no plano internacional quanto no doméstico.
Isso também pôde se apreciar com relação à tão mencionada reforma militar. Em termos globais, a ampla margem de manobra com a que contava o governante peronista no que concernia à frente militar não se traduziu em iniciativas de reestruturação substanciais. Isso marcou uma orientação de continuidade com relação às limitações observadas durante a gestão anterior acerca da reestruturação orgânico-funcional das instituições militares. Desde um primeiro momento da gestão menemista ficou claro que as medidas reformistas no âmbito militar foram concebidas só como uma forma de adequar as instituições castrenses à ajustamento econômico, à racionalização fiscal e à reforma de privatizações do Estado empreendida desde meados de 1989, sem que mediasse a formulação de um novo perfil profissional para essas instituições. Neste sentido, os planos de "reestruturação militar" anunciados não foram mais que esquemas de ajustamento e reordenação administrativa baseados na dissolução, translado, novos agrupamentos e/ou localizações de unidades, na venda de prédios e imóveis e na redução do pessoal das três armas. Nada disso supôs uma reestruturação orgânico-funcional das instituições militares, e tal déficit não pôde ser saneado nem pela compra de aviões caça-bombardeiros nem pelo envio de tropas às missões de paz internacionais nem pelos reiterados elogios presidenciais às Forças Armadas.
Esta lógica, além do mais, pôde se observar também com relação à questão orçamentária e à privatizações das empresas da área de defesa. A brusca redução do gasto militar, em verdade, se iniciou durante a gestão alfonsinista. Porém, durante a administração menemista, essa redução foi ainda maior. No ano de 1994 o gasto militar chegou só ao 1,74 % do PBI e ao 11,4 % do total de gastos fiscais. Neste caso, este processo tampouco foi acompanhado por medidas que tendessem a reorganizar e adaptar as instituições castrenses às condições e necessidades fiscais do país, Igual que na gestão anterior, tratou-se de um profundo recorte orçamentário sobre instituições que mantiveram o mesmo esquema organizativo e de funcionamento, só que a profundidade desse recorte durante o governo peronista, as colocou em uma situação de virtual paralisia funcional, permitindo um quadro no que, à redução do tamanho das Forças Armadas quanto a efetivos, unidades e armamentos, se somou o descenso no nível de profissionalização e da capacidade operativa. Do mesmo modo, a privatização das empresas da área de defesa não esteve orientada à reestruturação do setor nem à reconversão, mas à necessidade de obter liquidez e recursos para fazer frente ao pronunciado déficit fiscal e para conseguir certo saneamento patrimonial do Estado.
7.4) Entre a subordinação militar e a fraqueza civil.
As relações cívico-militares articuladas durante o governo de Alfonsín estiveram marcadas, de um lado, pela fraqueza governamental e, do outro lado, pela crise profissional das Forças Armadas. Como se disse, a presença autônoma dos militares no interior do Estado foi quase nula, inclusive para a definição dos aspectos mais relevantes da vida institucional das próprias Forças Armadas e, em conseqüência, não se observou uma projeção tutelar delas sobre a vida política. Daí que o espaço e as possibilidades para desenvolver iniciativas que objetivassem a reformulação das instituições armadas foram consideráveis e, por tanto, a falta de políticas nesse sentido evidenciou a relativa incompetência com que o governo abordou a questão militar.
A pesar disso, durante esses anos, foi evidente que os militares foram se subordinando paulatinamente ao poder político civil. Porém, esta conflitante, mas crescente subordinação não resultou de políticas integrais que tenham objetivado centralmente uma redefinição doutrinal, orgânica e funcional das Forças Armadas, mas que derivou, antes bem, da combinação de um conjunto de condições de situação gerais, tais como a profunda revalorização social da democracia, o respaldo internacional à consolidação democrática, as profundas mudanças internacionais e regionais, a política exterior que tendia a privilegiar os processos de integração regional, a crise fiscal e o ajustamento econômico, assim como também da esporádica, mas não menos importante convergência lograda entre o oficialismo e a oposição em questões chaves como a lei de Defesa Nacional, a desmilitarização da segurança interna e a consolidação do sistema institucional perante as rebeliões carapintada. Estas condições somadas à ampla crise profissional que cruzou ao conjunto das instituições castrenses, cercearam todo impulso militar que tivesse o intuito de se projetar politicamente em forma autônoma ou a impor lhe condições políticas ou institucionais tanto ao governo quanto à classe política em geral, a até impediram que as cúpulas militares, em determinados momentos, puderam articular certa capacidade de veto sobre decisões políticas ou institucionais tomadas pelo poder executivo ou o legislativo naqueles assuntos chaves referidos tanto à revisão do passado quanto aos temas acima mencionados.
De todos modos, a indefinição governamental no estabelecimento de prioridades e objetivos gerais com relação às questões da defesa nacional e a ausência de políticas militares globais foram uma constante ao longo de toda a gestão radical. Isso refletiu as limitações com que o governo alfonsinista encarou os temas militares. A problemática derivada dos crimes perpetrados durante a ditadura do processo constituiu uma pesada herança para o governo radical. A magnitude da repressão desatada naquela época e a gravidade das seqüelas do terrorismo de Estado assim como a forte pressão social a favor da implementação de uma revisão ampla desse passado, condicionaram substancialmente o primeiro governo da democracia recentemente instaurada.. No entanto, a centralidade que este governo outorgou ao tema, as ambigüidades e contradições com que o encarou e o simultâneo abandono de uma política militar assentada na reforma das Forças Armadas e não na revisão judicial do passado, geraram um cenário altamente conflitante e por momentos impossível de dirigir para p próprio governo. Perante esta situação, este, mais preocupado por ensaiar saídas de curto prazo aos conflitantes problemas derivados da revisão do passado antes que por delinear um novo feitio institucional e profissional para os fardados, restringiu a reforma militar a um conjunto de medidas menores, tais como a diminuição do gasto militar ou a dissolução ou translado de unidades, sem que isso fosse acompanhado de uma reformulação conceptual da defesa e, nesse contexto, de uma reestruturação geral das instituições militares.
Assim, cabe afirmar que a administração alfonsinista tem carecido de eficácia na instrumentação de decisões e iniciativas que conduzissem a estabilizar as relações cívico-militares. Essa carência foi significativa na hora de desativar com sucesso as questões altamente conflitantes herdadas da ditadura militar, particularmente em todo o referido à revisão do passado, ou na hora de sentar fundamentos políticos e institucionais para reconverter o aparelho militar. No final do governo de Alfonsín, continuavam sendo tangíveis as deformações orgânico-funcionais que portavam as instituições militares diante as novas condições institucionais, econômicas e internacionais e, em conseqüência, a reforma militar era uma tarefa pendente, do mesmo modo que a questão da revisão do passado e a confrontação existente no interior do Exército entre a direção dessa arma e o setor carapintada continuavam configurando assuntos não resolvidos. Estes, de certo, se constituíram nas principais deficiências da administração radical e suas conseqüências conformaram heranças conflitantes que se projetaram sobre o futuro governo constitucional.
Em 1989, as circunstâncias políticas eram substancialmente diferentes das existentes em momentos da instauração democrática de 1983. No relativo à questão militar, o desafio de Menem não passou por redefinir as relações cívico-militares objetivando o logro da estabilidade institucional da democracia, dado que a sorte dela não estava vinculada aos perigos de regressão autoritária através de um eventual golpe de Estado militar. A pesar das situações altamente conflitantes e desestabilizadoras produzidas durante s segunda metade da década do 80 e à persistência de um discurso militar de reivindicação da ação castrense no passado autoritário, a subordinação das Forças Armadas aos poderes constitucionais era naquele momento um fato indiscutível. Depois da estrondosa saída alfonsinista do governo nacional, ficou claro que os dilemas da democracia na Argentina passavam pela capacidade governamental para estabilizar a economia e para fazer frente aos desafios das novas condições financeiras, produtivas e comerciais imperantes no plano internacional, regional e local. Com certeza, desde o início do mandato menemista, a estabilidade institucional democrática se dava por descontada, o que supunha, no que concernia às relações cívico-militares, a emergência de novas condições e oportunidades para reforçar a subordinação castrense às autoridades civis, condições e oportunidades diferentes daquelas que prevaleceram durante a gestão de Alfonsín.
Este panorama interno foi reafirmado no plano externo pelas transformações produzidas no fim da década do 80 no cenário internacional e regional, em particular, no âmbito subregional do Cone Sul, mudanças que supuseram a emergência de novas condições geopolíticas e estratégicas para a Argentina. O desaparecimento do conflito Este Oeste, da "ameaça comunista" e da busca permanente da supremacia militar entre potências como coordenadas centrais das relações internacionais teve a ver com a perda de relevância e posta em segundo plano da dimensão militar no cenário internacional. Por sua parte, na América Latina e, particularmente, no Cone Sul, estas alterações foram acompanhadas pelo processo de integração subregional iniciado e aprofundado desde 1985 até hoje, permitindo a adoção de políticas, em princípio, de cooperação e complementares da região e, depois, de integração. Todo isto fornecia, em definitiva, um contexto regional marcado por uma situação de paz e estabilidade.
Neste contexto, Menem interpretou apropriadamente as novas condições políticas que se impunham tanto no cenário internacional quanto no doméstico e utilizou melhor que Alfonsín os recursos disponíveis para aumentar a capacidade de controle governamental sobre os homens de armas, embora isso não se traduzisse em uma política integral na hora de produzir mudanças de fundo na estrutura institucional das Forças Armadas. Por um lado, o mandatário peronista tem sido eficaz e altamente competente na instrumentação de decisões e iniciativas conducentes a estabilizar as relações cívico-militares e a consolidar a subordinação castrense ao poder político, já for desarticulando com sucesso as questões altamente conflitantes herdadas da gestão radical, for impondo eficazmente seu próprio critério por sobre o critério das chefias militares em assuntos chaves; ou seja, tornando secundárias as questões que concerniam à defesa nacional e delimitando o âmbito de ação institucional das Forças Armadas. Neste aspecto, igual que Alfonsín, não formulou nem levou a cabo uma política militar integral assentada na reestruturação orgânico-funcional das Forças Armadas, que objetivasse a superação de suas deformações existentes no funcionamento e organização e dar lhes um novo perfil profissional em sintonia com as novas condições políticas, econômicas e internacionais imperantes.
No caso de Menem, o déficit foi substancialmente mais notável em comparação com a gestão alfonsinista, já que a desativação das situações conflitantes herdadas, a ampla margem de subordinação castrense ao governo civil, a existência de uma situação internacional e local mais favorável e os logros obtidos na estabilização e o crescimento da economia, brindaram um contexto melhor que o existente nos anos 80 e abriram novas oportunidades para viabilizar iniciativas que tendiam a produzir as mudanças necessárias nas Forças Armadas. O único obstáculo para isso esteve dado pela indiferença com que o governo tratou as questões militares e da defesa nacional, as que já não ocupavam um lugar central no cenário político como sim o ocuparam na década anterior. Vale dizer, durante a primeira presidência de Menem, a reforma das Forças Armadas não se implementou porque o poder político não quis.
E esta orientação governamental permitiu uma situação extremadamente crítica para as Forças Armadas. Durante os anos 60 e 70 tanto a guerra antisubversiva quanto a concorrência bélica com países vizinhos pela superioridade estratégica na região configuraram os parâmetros ao redor dos quais se formularam e definiram as concepções e paradigmas da defesa nacional e da segurança interior, as ameaças, os conflitos e as hipóteses de guerra, e em torno dos quais se organizou o planejamento militar estratégico e se montou a estrutura orgânico-funcional das Forças Armadas. Não obstante, a partir das mudanças produzidas durante os primeiros anos da década do 90 no cenário mundial e regional, esses parâmetros sumiram e, por conseguinte, deixaram de ser o âmbito onde se referenciavam a organização e o funcionamento das instituições castrenses. Pois bem, Menem não traduziu estas condições em políticas integrais em matéria militar e, em conseqüência, a inexistência de iniciativas globais que tendessem a reestruturar e modernizar as Forças Armadas conforme àquelas mudanças e às novas condições fiscais, as converteu em instituições anacrônicas com relação ao contexto internacional, regional e local e em organizações ineficientes e vetustas com relação aos novos desafios defensivos que se impuseram.
Em síntese, as relações cívico-militares articuladas durante o governo de Menem estiveram caracterizadas, de um lado, por um alto grau de subordinação castrense ao poder civil e, de outro lado, pelo exercício eficiente da direção institucional de parte do governo no que concernia à estabilização e normalização dessas relações, e pela fraqueza governamental no que se relacionava com a reestruturação das Forças Armadas e sua adequação aos novos parâmetros políticos e econômicos existentes no cenário internacional e no doméstico.
Isto indica que, durante todo o período analisado, ao mesmo tempo que se foram ampliando as margens de subordinação militar ao poder civil, também se foram adquirindo certas modalidades parciais de exercício efetivo do mando ou governo político-institucional sobre as Forças Armadas, particularmente durante o mandato de Menem. De todos modos, tal como se observou acima, os defeitos e as insuficiências das autoridades governamentais no exercício do governo sobre as instituições militares foram uma constante ao longo de todo o período. O eixo dessas limitações passou pela omissão de uma abordagem integral das problemáticas da defesa nacional e pela ausência de uma política voltada à reestruturação institucional da matriz doutrinal, organizativa e funcional das Forças Armadas. Porém, a pauta de subordinação militar às autoridades constitucionais foi-se impondo e consolidando paulatinamente, as relações cívico-militares se foram estabilizando e, em 1995, não se vislumbravam situações que pudessem alterar essas tendências.
No fim do primeiro governo menemista, as relações cívico-militares desembocaram em uma situação de dualismo cívico-militar marcada pelo acomodamento civil deficiente, deixando atrás a época em que os defeitos da classe política se conjugavam com a autonomia militar. Estava-se na ante-sala de uma situação de controle civil eficiente sobre as Forças Armadas, e tudo dependia do desempenho futuro da classe política a respeito. Neste contexto, adquiria uma dramática atualidade aquela brilhante afirmação de Maquiavelo que dizia que "[...] prospera aquele que harmoniza seu modo de proceder com a condição dos tempos e [...] paralelamente, decai aquele cuja conduta entra em contradição com eles".